As 95 teses de Martinho Lutero

AS 95 TESES DE LUTERO

Palavras de Martinho Lutero.

Protestação
Como este é um debate teológico, repetirei aqui, mais uma vez, a protestação habitual nas escolas, para pacificar os ânimos que porventura tenham se ofendido com o simples texto de debate.

Em primeiro lugar, protesto que absolutamente nada quero dizer ou sustentar senão o que é e pode ser sustentado primeiramente nas Sagradas Escrituras e a partir delas, depois em a partir dos pais da Igreja aceitos e até agora conservados pela Igreja Romana, e, por fim, a partir dos cânones e das decretais pontifícias. Se alguma coisa não pode ser aprovada ou desaprovada a partir deles, mantê-la-ei apenas por causa do debate, segundo o juízo da razão e a experiência; nestas coisas, porém, fica sempre ressalvada a decisão de todos os meus superiores.

Uma coisa acrescento e reivindico para mim conforme o direito da liberdade cristã: quero refutar ou aceitar, segundo meu arbítrio, as opiniões do B. Tomás, do B. Boaventura ou de outros escolásticos ou canonistas que sejam meramente propostas, sem texto e sem prova. Farei isto de acordo com o conselho de Paulo: "Julgai todas as coisas, retende o que é bom." (1 Ts 5.21). No entanto, conheço a opinião de alguns tomistas que querem que o B. Tomás seja aprovado pela Igreja em todas as coisas. É suficientemente sabido quanto vale a autoridade do B. Tomás. Creio que por meio desta minha protestação fica suficientemente claro que por certo posso errar, mas que não sou um herege, por mais que rujam e se desfaçam de raiva aqueles que pensam ou desejam outra coisa.


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Tese 1
Ao dizer: "Fazei Penitência", etc. [Mt 4.17], nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo quis que toda a vida dos fiéis fosse penitência.
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Afirmo esta tese e dela em nada duvido.
Contudo, demonstro-a por causa dos incultos: em primeiro lugar, a partir do próprio termo grego metanoite, isto é, fazei penitência, o que pode ser traduzido de maneira extremamente exata por transmentamini, isto é, "tomai outra mente e maneira de pensar e sentir, recobrai os sentidos, fazei uma transição da mente e uma passagem do espírito", de modo que vós, que até aqui compreendestes as coisas terrenas, agora compreendais as celestiais. É o que o apóstolo diz em Rm 12.2: "Renovai-vos pela novidade de vossa mente". Através dessa recuperação dos sentidos acontece que o prevaricador cai em si e odeia seu pecado. Certo é, porém, que essa recuperação dos sentidos ou ódio de si mesmo deve acontecer durante a vida toda, conforme aquela passagem: "Quem odeia a sua vida neste mundo preservá-la-á para a vida eterna" (Jo 12.15). E de novo: "Quem não toma a sua cruz e me segue não é digno de mim" (Mt 10.38). E no mesmo lugar: "Não vim para enviar paz, mas a espada." (Mt 10.34). Mt 5.4: "Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados". E Paulo, em Rm 6 e 8, bem como em muitos outros lugares, ordena mortificar a carne e os membros que estão sobre a terra. Em Gl 5.24 ensina que se crucifique a carne com suas concupiscências. Em 2 Co 6.4,5 ele diz: "Mostremos a nós mesmos em muita paciência, em muitos jejuns", etc. Exponho isso extensamente, como se lidasse com pessoas que não conhecem nossa posição.

Por isso demonstro a mesma tese também pela razão. Porque Cristo é o mestre do espírito, não da letra, e suas palavras são vida e espírito, é necessário que ele ensine uma penitência que seja feita em espírito e em verdade, não uma penitência que possa ser feita exteriormente pelos mais soberbos hipócritas, desfigurando o rosto em jejuns, orando nos cantos e dando esmolas com trombetas. Digo que é preciso que Cristo ensine uma penitência que possa ser feita em toda espécie de vida - que o rei em sua púrpura, o sacerdote em sua pureza e os príncipes em sua dignidade possam fazer não menos do que o monge em seus ritos e o mendigo em sua pobreza, assim como fizeram Daniel e seus companheiros em meio à Babilônia. Pois a doutrina de Cristo deve convir a todos os seres humanos, isto é, de todas as condições.

Em terceiro lugar, por toda a vida oramos e devemos orar: "Perdoa-nos as nossas dívidas" (Mt 6.12). Logo, durante toda a vida fazemos penitência e desagradamos a nós mesmos, a não ser que alguém seja tão tolo, que creia que deve fazer de conta que ora pela remissão das dívidas. Pois as dívidas pelas quais nos é ordenado orar são verdadeiras e não devem ser menosprezadas; mesmo que sejam veniais, não podemos ser salvos se não tiverem sido perdoadas.


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Tese 2
Esta expressão não pode ser entendida no sentido da Penitência sacramental (da confissão e satisfação celebrada pelo ministério dos sacerdotes).
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Afirmo e demonstro também esta tese:
1. Em primeiro lugar, porque a Penitência sacramental é temporal e não pode ser feita a todo momento. Do contrário, dever-se-ia falar incessantemente com o sacerdote e não fazer qualquer outra coisa exceto confessar os pecados e cumprir a satisfação imposta. Por isso ela não pode ser aquela cruz que Cristo manda tomar sobre si, nem é a mortificação das paixões da carne.

2. A Penitência sacramental é apenas externa e tem a interna como pré-requisito, sem a qual nada vale. Ora, esta é interna e pode existir sem a sacramental.

3. A Penitência sacramental pode ser fingida; esta só pode ser verdadeira e sincera. Se não fosse sincera, seria uma penitência de hipócritas, não a que Cristo ensina.

4. A respeito da Penitência sacramental não se tem um mandamento de Cristo. Ela foi estatuida pelos pontífices e pela Igreja (pelo menos no que diz respeito à sua terceira parte, ou seja, à satisfação). Por esta razão, também pode ser mudada segundo o arbítrio da Igreja. Mas a penitência evangélica é lei divina, não podendo ser mudada nunca, pois é aquele sacrifício perpétuo chamado um coração contrito e humilhado.

5. Cabe aqui a observação de que os mestres escolásticos são unânimes em distinguir a penitência como virtude da Penitência sacramental, considerando a penitência como virtude como matéria ou objeto do Sacramento da Penitência.


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Tese 3
No entanto, ela não se refere apenas a uma penitência interior; sim, a penitência interior seria nula se, externamente, não produzisse toda sorte de mortificação da carne.
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Afirmo e demonstro também esta tese:
1. Em Rm 12.1 o apóstolo ordena que ofereçamos nossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus. Em seguida, expõe clara e amplamente como isso deve ser feito, ao ensinar que pensemos com humildade, sirvamos e amemos uns aos outros, perseveremos na oração, sejamos pacientes, etc. Como ele também diz em 2 Co 6.4,5: "Mostremos a nós mesmos em muita paciência, em jejuns e vigílias", etc. Porém também Cristo ensina, em Mt 5 e 6, a jejuar, orar, dar esmolas corretamente. Do mesmo modo, em outro lugar: "O que resta, dai como esmola, e eis que tudo vos será limpo." [Lc 11.41]

Daí se segue que, por serem preceito de Cristo, aquelas três partes da satisfação - jejum, oração e esmola - não pertencem à Penitência sacramental no que diz respeito à substância das ações. Pertencem a ela no que diz respeito ao modo e tempo determinado segundo o qual a Igreja as ordenou, a saber, quanto tempo se deve orar, jejuar, dar, do mesmo modo quanto e o que se deve orar, quanto e o que não se deve comer e quanto e o que se deve dar. Contudo, na medida em que pertencem à penitência evangélica, o jejum compreende todos os castigos da carne, sem escolha de alimentos e sem diferença de roupas; a oração, todo exercício da alma: meditar, ler, ouvir, orar; a esmola, todo obséquio para com o próximo. Assim, pelo jejum [a pessoa] serve a si mesma; pela oração, a Deus; e pela esmola, ao próximo. Pelo primeiro, ela vence a concupiscência da carne e vive sóbria e castamente; pela segunda, vence a soberba da vida e vive piedosamente; pela terceira, vence a concupiscência dos olhos e vive de maneira justa neste mundo. Por isso, todas as mortificações que a pessoa compungida se impõe - sejam elas vigilias, trabalhos, privações, estudos, orações, evitar o sexo e os prazeres - pertencem à penitência interior como seus frutos, na medida em que promovem o espírito.

2. Assim agiu o Senhor mesmo, e com ele todos os seus santos. Assim, finalmente, ele ordenou: "Que a vossa luz brilhe diante dos seres humanos, para que vejam nossas boas obras." [Mt 5.16] Pois sem dúvida as boas obras são, exteriormente, frutos da penitência e do Espírito, já que o Espírito não faz nenhum som senão o da rola, isto é, o gemido do coração, a raiz das boas obras.

[...]

Cristo é, sem dúvida, um legislador divino, e sua doutrina, direito divino, isto é, um direito que nenhum poder pode mudar ou do qual pode dispensar. Mas se a penitência ensinada por Cristo nessa passagem [Mt 4.17] significa a Penitência sacramental, isto é, a satisfação, e se a esta o papa pode mudar e, de fato, muda conforme seu arbítrio, então ou o papa tem em seu poder o direito divino, ou ele é o mais ímpio adversário de seu Deus, anulando o mandamento de Deus. Se ousam afirmar isso aqueles que se gloriam de debater para o louvor de Deus, e para a defesa da fé católica, e para a honra da santa Sé Apostólica, e para a revelação da verdade, e para a supressão dos erros; por fim, se é assim que honram a Igreja e defendem a fé os que querem ser vistos como inquisidores da depravação herética [...] o que, pergunto, sobra para os mais loucos hereges, com que também eles possam blasfemar e incriminar o papa e a Sé Apostólica? A tais pessoas eu não chamaria publicamente de inquisidores, mas de enxertadores da depravação herética. [...]


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Tese 4
Por conseqüência, a pena perdura enquanto persiste o ódio de si mesmo (isto é a verdadeira penitência interior), ou seja, até a entrada no reino dos céus.
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Afirmo e demonstro também esta tese:
1. Ela se segue como conseqüências segura, qual corolário, do que foi dito. Pois se toda a vida é uma penitência e uma cruz de Cristo, não só nas aflições voluntárias, mas também nas tentações por parte do diabo, do mundo e da carne, sim, também nas perseguições e nos sofrimentos, como se evidencia a partir do que foi dito, de toda a Escritura, do exemplo do próprio santo dos santos e de todos os mártires, é certo que essa cruz dura até a morte e, assim, até a entrada no reino.

2. Isso é evidente também em outros santos. Santo Agostinho fez com que lhe fossem copiados os sete salmos penitenciais e os orava e meditava com lágrimas, dizendo que mesmo que algum bispo tivesse vivido de maneira justa, não deveria partir deste mundo sem penitência. Assim clamou também o B. Bernardo, quando agonizante: "Vivi de maneira infame, porque desperdicei o tempo. Nada tenho senão que sei que tu, Deus, não desprezarás um coração contrito e humilhado."

3. Por meio da razão: essa cruz da penitência deve durar até que, segundo o apóstolo, seja destruído o corpo do pecado, pereça a velhice do primeiro Adão juntamente com sua imagem, e o novo Adão seja tornado perfeito à imagem de Deus. O pecado, porém, permanece até a morte, embora diminua a cada dia pela renovação diária da mente.

4. Pelo menos o castigo da morte permanece em todos, bem como o temor da morte, que certamente é o maior dos castigos e, em muitos, mais penosos do que a própria morte, para não falar do medo do juízo e do inferno, do terror da consciência, etc.


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Tese 5
O papa não quer nem pode dispensar de quaisquer penas senão daquelas que impôs por decisão própria ou dos cânones.
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Esta tese eu debato e peço humildemente que me instruam. E assim como roguei no prefácio, da mesma forma rogo ainda agora: quem puder, que me estenda a mão e atente para meus motivos.

1. Em primeiro lugar, vamos reunir as espécies de penas que os crentes podem sofrer:

A primeira é a pena eterna, o inferno dos condenados, que não tem nada a ver com o assunto em pauta. Pois é certo que, como sustentam todos em toda a igreja, este castigo não está no poder nem do maior nem do menor dos pontífices. Esta pena só Deus remite pelo perdão da culpa.

A segunda pena é a do purgatório, a respeito da qual veremos mais abaixo na tese que dela trata; entrementes, pressupomos que ela não está no poder do pontífice ou de qualquer ser humano.

A terceira pena é a pena voluntária e evangélica. Quanto a ela, dissemos acima que é realizada pela penitência espiritual, segundo aquela palavra de 1 Co 11.31: "Se nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados pelo Senhor." Ela é aquela cruz e mortificação das paixões mencionada acima na tese 3. Ora, como esta pena é ordenada por Cristo, pertence à essência da penitência espiritual e é inteiramente necessária para a salvação, de forma nenhuma está no poder de qualquer sacerdote aumentá-la ou diminuí-la. Pois ela não depende do arbítrio de um ser humano, mas da graça e do Espírito. Sim, esta pena está nas mãos do papa menos do que o estão todas as outras penas, como quer que se chamem. Mesmo que possa anular junto a Deus, pelo menos através de oração, a pena eterna, purgatória, aflitiva, assim como pode obter a graça justificante para o pecador - esta pena, no entanto, ele não pode anular, nem mesmo através de oração. Deve, antes, obtê-la para o pecador e impô-la, isto é, anunciá-la como imposta, não menos que [lhe] obtém a graça. Do contrário, esvaziaria a cruz de Cristo, e uniria o resto dos cananeus com seus próprios filhos e filhas, e não mataria os inimigos de Deus, ou seja, os pecados, até o extermínio; a não ser que visse que algumas pessoas, com fervor excessivo, se afligem mais do que é conveniente para sua salvação e para a necessidade dos outros. Neste caso, deve não só perdoar, mas também proibir, assim como São Paulo diz a Timóteo: "Não mais bebas água", etc. [1 Tm 5.23].

A quarta pena é castigadora e uma flagelação da parte de Deus, da qual [diz] Sl 89.31s.: "Mas se seus filhos pecarem e não guardarem minha lei, visitarei suas iniqüidades com a vara e seus pecados com açoites de seres humanos." Quem duvida que essa pena não esteja nas mãos dos pontífices? Pois Jr 49.12 diz que ele a impõe a inocentes: "eis que os que não estavam condenados a beber o cálice o beberão, e tu sobrarias como que inocente? Não serás inocente, mas o beberás.". E do mesmo profeta: "Eis que na cidade em que meu nome é invocado eu começo a afligir; e vós sereis como que inocentes? Não sereis inocentes." (Jr 25.29). Donde [diz] o B. Pedro em 1 Pe 4.17: "Agora é tempo de começar o júizo pela casa de Deus; se o primeiro por nós, qual será o fim daqueles que não crêem no Evangelho?" Ap 3.19: "Eu castigo a quem amo." E Hb 12.6: "Ora, ele açoita todo filho a quem recebe." Se o sumo pontífice quisesse remitir esta pena ou se o pecador cresse que ela é remitida, certamente aconteceria que resultariam [filhos] adulterinos e espúrios, como [diz] Hb 12.8: "Se estais sem disciplina, de que todos foram feitos participantes, logo sois bastardos, e não filhos." Pois João Batista e os maiores santos sofreram esta pena.

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A quinta é a pena canônica, isto é, estabelecida pela Igreja. Não há dúvida de que ela está de pleno direito nas mãos do sumo pontífice, porém assim que (como dizem) haja uma justa razão para sua remissão e a chave não erre. Eu, contudo (em minha temeridade), não compreenderia essa justa razão tão rigidamente como muitos soem fazer. Pois a piedosa vontade do pontífice parece ser suficiente, e esta deveria ser uma razão suficientemente justa. Também não vejo como, nessa remissão, poderia acontecer um erro da chave, ou, se acontecer, em que ele haveria de prejudicar, já que a alma é salva, mesmo que, por um erro, tais penas não fosse remitidas.

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A sexta pena - que quero imaginar até ser instruido de outra maneira - é aquele que eles dizem ser exigida segundo a justiça divina, para satisfazer a justiça divina. Esta pena, entretanto - se é diferente da terceira e da quinta (como é necessário que seja, se deve ser a sexta) -, não pode ser sequer imaginada exceto no sentido de que seria imposta - a saber, mais oração, jejum, esmolas - onde a terceira e a quinta não fossem suficientes. Assim, ela diferiria da quinta ou da terceira somente pelo grau de intensidade. Ela não pode significar a pena civil, pois esta (como eu disse) ele não remite; de outro modo, as cartas de indulgências aboliriam todos os patíbulos e locais de tortura e execução pela Igreja. Mas ela também não pode significar a pena canônica de fato imposta através da sentença de um tribunal de causas litigiosas, pois, como a experiência evidencia suficientemente, ele não remite excomunhões, interditos ou quaisquer censuras eclesiásticas já infligidas. Resta, portanto, a pena que eu disse que vou apenas imaginar. Contudo, estou persuadido de que tal pena é inexistente: em primeiro lugar, porque por afirmação nenhuma da Escritura, dos mestres, dos cânones nem por um argumento racional plausível se pode ensinar que existe uma pena dessas; e é muito absurdo ensinar qualquer coisa na Igreja que não possa ser fundamentada nem na Escritura, nem nos mestres, nem nos cânones, nem ao menos através de argumentos racionais. Em segundo lugar, porque, mesmo que houvesse uma pena dessas, ela não pertenceria à remissão do papa, já que é voluntária e imposta para além dos cânones; aliás, ela não é imposta, e sim assumida por vontade própria, pois é diferente das penas que são impostas, como foi dito acima no contexto da quinta pena.

2. Em segundo lugar, demonstro a tese da seguinte maneira: aqueles dois poderes - o de ligar e o de desligar - são iguais e se referem à mesma matéria. No entanto, o sumo pontífice não tem [poder] para ligar e impor nenhuma pena exceto a canônica ou quinta; logo, também não pode desligar e anular alguma [outra]. Ou então teria que se dizer que esses dois poderes são de extensão desigual. Se diz isto, ninguém é obrigado a crer, pois não é provado por quaisquer passagens da Escritura nem por quaisquer cânones, ao passo que é claro o texto em que Cristo concedeu [o poder de] ligar sobre a terra e [o de] desligar sobre a terra, medindo e estendendo ambos os poderes de igual modo.

3. A extravagante de pe. et re. li. V. c. Quod autem diz expressamente que as remissões não têm validade para quem não as receber de seu juiz, visto que ninguém pode ser ligado ou desligado por alguém que não seja seu juiz. Certo é, porém, que o ser humano não está sob a jurisdição do papa nas penas da primeira, segunda, terceira, quarta e sexta espécies, mas apenas na quinta, como é claramente evidente e como ficará mais evidente abaixo.

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Tese 6
O papa não pode remitir culpa alguma senão declarando e confirmando que ela foi perdoada por Deus, ou, sem dúvida, remitindo-a nos casos reservados para si; se estes forem desprezados, a culpa permanecerá por inteiro.
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A primeira parte é tão evidente, que alguns até confessaram que é uma maneira de falar imprópria quando [se diz que] o papa dá remissão da culpa. Outros, porém, confessam não entender. Pois todos confessam que a culpa é perdoada unicamente por Deus, conforme Is 43.25: "Eu, eu mesmo, sou o que apago as tuas iniqüidades por amor de mim, e dos teus pecados não me lembrarei." E Jo 1.29: "Eis o cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo." E Sl 129[130].3s: "Se observares, Senhor, iniqüidades, quem, Senhor, subsistirá? Pois contigo está a propiciação." E mais abaixo: "Junto ao Senhor há misericórdia, junto a ele, copiosa redenção. É ele quem redime Israel de todas as suas iniqüidades." (Sl 130.7s). E Sl 50[51].10: "Cria em mim, ó Deus, um coração puro", etc. E, em tantas obras contra os donatistas, o B. Agostinho outra coisa não diz senão que os pecados são perdoados somente por Deus.

A segunda parte é igualmente muito clara, pois a quem desprezasse os casos reservados certamente não seria remitida nenhuma culpa. "Quem vos desdenhar", diz ele, "a mim me desdenha." [Lc 10.16] Sim, ninguém retorna de Deus com a culpa perdoada se não leva consigo, ao mesmo tempo, reverência para com as chaves.

Uma vez que esta tese é admitida por todos como verdadeira, não é necessário que ela seja reforçada por minha afirmação. Não obstante, indicarei aqui o que me preocupa e, mais uma vez, confessarei minha ignorância, se alguém se dignar a me instruir e elucidar essa questão com maior clareza. Em primeiro lugar, quanto à primeira parte, parece que essa maneira de falar ou opinião é imprópria e incompatível com o texto do evangelho, já que se diz que o sumo pontífice desliga, isto é, declara desligada a culpa ou confirma. Pois o texto não diz: "Tudo o que eu desligar nos céus tu desligarás na terra", mas, pelo contrário: "Tudo o que desligares na terra eu desligarei, ou será desligado, nos céus", onde o sentido é mais de que Deus confirma o desligamento do sacerdote do que vice-versa. Em segundo lugar, em relação à segunda parte, é certo que os casos que o papa desliga são desligados também por Deus, e que ninguém pode se reconciliar com Deus se não reconciliar primeiramente, pelo menos em desejo, com a Igreja. Também é certo que a ofensa a Deus não é removida enquanto permanecer a ofensa à Igreja. Mas é de se perguntar se alguém, tão logo esteja reconciliado com a Igreja, também está reconciliado com Deus. O texto sem dúvida diz que tudo o que está desligado na Igreja estará desligado também no céu, porém não parece seguir-se daí que, por este motivo, pura e simplesmente tudo estará desligado no céu, mas unicamente aquilo que está desligado na Igreja. Em minha opinião, essas duas perguntas não são de pouca importância; quanto a elas, talvez vou expor minha opinião mais amplamente na tese seguinte.


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Tese 7
Deus não perdoa a culpa de qualquer pessoa sem, ao mesmo tempo, sujeitá-la, em tudo humilhada, ao sacerdote, seu vigário.
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Afirmo esta tese. Ela não necessita de debate ou de demonstração, já que é aprovada por tão grande consenso de todos. Todavia, ainda me preocupo com sua compreensão. E vou expor minha maneira de pensar primeiramente como um tolo. Pois esta tese, juntamente com a precedente, afirma que Deus não perdoa a culpa a não ser que haja anteriormente uma remissão por parte do sacerdote, pelo menos em desejo, como diz o texto com clareza: "Tudo o que ligares", etc. [Mt 16.19]. E Mt 5.24: "Vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e então, voltando, faze a tua oferta." E esta passagem: "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus." [Mt 22.21]. E na oração do Senhor: "Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como também nós perdoamos aos nossos devedores." [Mt 6.12] Em todas estas passagens é dado a entender que a remissão na terra é anunciada antes que [acontece] a remissão nos céus. Pergunta-se, com razão, como isso pode acontecer antes da infusão da graça, isto é, antes da remissão de Deus, pois, sem que a graça de Deus tenha perdoado primeiramente a culpa, o ser humano não pode ter sequer o desejo de buscar a remissão. Quanto a isso, assim digo e compreendo: quando Deus começa a justificar o ser humano, ele o condena primeiro; ele destrói a quem quer edificar, fere a quem quer curar, mata a quem quer vivificar, como diz em 1 Rs 2 e Dt 32.39: "Eu mato e vivifico", etc. Ora, ele faz isso quando abate o ser humano e o humilha e assusta no conhecimento de si mesmo e de seus pecados, para que diga, como mísero pecador: "Não há paz nos meus ossos por causa dos meus pecados; não há saúde em minha carne por causa de tua ira." [Sl 38.3]. Pois assim os montes se desvanecem perante o Senhor. "Assim ele envia suas setas e os conturba; pela tua repreensão, Senhor, e pelo sopro do espírito da tua ira." [Sl 18.14s]. Assim os pecadores são voltados para o inferno, e sua face se enche de ignomínia. Essa conturbação e agitação foi experimentada freqüentemente por Davi, que a confessa com muitos gemidos em diversos salmos. Contudo, nessa conturbação começa a salvação, pois o temor do Senhor é o início da sabedoria. Aqui (como diz Naum 1.3), ao limpar, o Senhor não faz ninguém inocente e tem seus caminhos na tempestade e no turbilhão, e as nuvens são o pó de seus pés; aqui brilham os seus relâmpagos, a terra o vê e se agita; aqui suas flechas cruzam e se fincam, e a voz de seu trovão rola, isto é, faz a volta, e as águas o vêem e ficam com medo; em suma, aqui Deus realiza sua obra estranha, para realizar sua obra [própria]; esta é a verdadeira contrição do coração e humilhação do espírito, o sacrifício mais agradável a Deus; aqui está a vítima já imolada, cortada em pedaços e com a pele tirada, com o fogo aceso para o holocausto. E aqui a graça é infundida (como dizem), como afirma Is 41.3: "Ele os persegue e passa adiante em paz." E Is 66.2: "Meu espírito não repousará senão sobre quem é quieto e humilde e treme às minhas palavras." E Ezequias, em Is 38.16: "Ó Senhor, se assim se vive e em tais coisas está a vida do meu espírito, tu me castigarás e me farás viver." Porém então o ser humano ignora a sua justificação a tal ponto, que se crê próximo da condenação e crê que isso não é uma infusão da graça, mas sim uma efusão da ira de Deus sobre ele. No entanto, bem-aventurado é ele se sofre essa tentação, pois no momento em que se julgar consumido, se levantará como a estrela da manhã.

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Portanto, a remissão de Deus opera a graça, mas a remissão do sacerdote opera a paz, a qual também é graça e dom de Deus, porque é a fé na remissão e na graça presentes. Em minha opinião, esta é a graça que nossos mestres dizem ser conferida eficazmente através dos sacramentos da Igreja, porém ela não é a primeira graça justificamente, que deve estar nos adultos antes do sacramento, e sim, como se diz em Rm 1.17, fé em fé; pois é necessário que quem vem creia. Por outro lado, também a pessoa batizada precisa crer que creu e veio corretamente, ou então nunca terá a paz que só se tem a partir da fé. Por conseguinte, Pedro não desliga antes do que Cristo, mas declara e mostra o desligamento. Quem crer nisso com confiança obteve verdadeiramente paz e perdão junto a Deus (isto é, tornou-se certo de que está absolvido), não pela certeza da coisa, mas pela certeza da fé, por causa da palavra infalível daquele que promete misericordiosamente: "Tudo o que desligares", etc. Assim [diz] Rm 5.1: "Justificados gratuitamente por sua graça, temos paz junto a Deus por meio da fé", em todo caso não por meio de uma coisa, etc.


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Tese 8
Os cânones penitenciais são impostos apenas aos vivos; segundo os mesmos cânones, nada deve ser imposto aos moribundos.
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Esta tese eu debato, embora haja muitas pessoas que se admiram que ela seja duvidosa.

1. Em primeiro lugar, ela é provada em Rm 7.1: "A lei tem domínio sobre o ser humano enquanto este vive", etc. Como o apóstolo explica isto a respeito da lei divina, é muito mais verdade com relação à lei humana. Daí que ele diz no mesmo capítulo: "Quando morrer o marido, a mulher está desobrigada da lei do marido." [Rm 7.2]. Muito mais ele, quando morto, está desobrigado da lei da esposa que [ainda] vive. Pois o apóstolo argumenta do menor ao maior: se o vivo é desobrigado pela morte do outro, muito mais o é o próprio morto, pelo qual o [que ainda está] vivo é desobrigado.

2. Como todas as outras leis positivas, as leis canônicas estão presas às circunstâncias de tempo, lugar e pessoas (dist. XXIX), como é do conhecimento de todos. Pois somente a respeito da palavra de Cristo é dito: "Para sempre, ó Senhor, permanece a tua palavra, a tua verdade de geração em geração" [Sl 119.89s]; "e a sua justiça permanece para sempre." [Sl 111.3]. A palavra e a justiça dos seres humanos, porém, só permanecem por um tempo. Por isso, mudadas as circunstâncias, cessam também as leis, a menos que se queira dizer que, destruída a cidade, o lugar deserto ainda seja obrigado a fazer tudo o que a cidade fazia anteriormente, o que é absurdo.

3. Se o direito obriga a dispensar mesmo os viventes e a mudar a lei quando cessa a condição da lei ou quando ela se inclina para pior - visto que (como diz o papa Leão) aquilo que foi estabelecido em favor do amor não deve militar contra ele, assim certamente [isto vale também para] o que começar a militar contra a unidade, a paz, etc. -, quanto mais devem ser abolidas as leis para os moribundos, visto que neste caso não cessa apenas a condição das leis, mas também a própria pessoa para a qual e para cujas condições elas foram estabelecidas.

[...]

7. Se os cânones penitenciais permanecem para os mortos, pela mesma razão permanecem também todos os outros cânones. Por conseguinte, eles devem celebrar, observar festas, jejuns e vigílias, dizer as horas canônicas, não comer ovos, leite e carne em certos dias, mas apenas óleo, peixe, frutas e legumes, vestir roupas pretas ou brancas conforme a diferença dos dias e [carregar] outros pesadíssimos fardos com os quais agora a mísera, outrora libérrima Igreja de Cristo é premida. Pois não existe qualquer razão pela qual [apenas] alguns cânones cessem por causa do tempo, e não todos. Se cessam os que são bons e meritórios para a vida, por que não, antes, os aflitivos, estéreis e impeditivos? Ou vamos inventar também aqui uma troca, de modo que, assim como sofrem outras penas, proporcionadas a eles, da mesma forma fazem outras obras, proporcionadas a eles, e de modo que, não obstante, se deve dizer que eles lêem as horas canônicas?

[...]

11. Se a morte não é pena suficiente a não ser que o morto sofra também os cânones, então a pena dos cânones será maior do que a pena da morte, porquanto dura para além da morte. [Assim] se faz injustiça à morte dos cristãos, a respeito da qual é dito: "Preciosa é aos olhos do Senhor a morte de seus santos." [Sl 116.15].

12. Imagina que um pecador fosse raptado e, ao confessar a Cristo, sofresse incontinenti o martírio, antes de satisfazer os cânones (como se lê a respeito do mártir B. Bonifácio). Haverá o purgatório de reter tal pessoa, para que ela não esteja com Cristo? E acontecerá que se tenha de orar por um mártir na Igreja? Ora, toda pessoa que morre de livre vontade (é dessa pessoa que falamos, isto é, do cristão) também morre segundo a vontade de Deus.

[...]

15. Essa opinião de que os cânones devem ser cumpridos após a morte não tem absolutamente nenhuma passagem da Escritura, nenhum cânone ou razão plausível, mas, assim como muitas outras superstições, parece ter sido introduzida unicamente pela preguiça e negligência dos sacerdotes.

16. Além disso, temos exemplos dos antigos pais. Cipriano, talvez o mais rígido observante de censuras e disciplinas eclesiásticas, ordena, ainda assim, na carta 17 do Livro III, que se dê a paz àqueles que estão submetidos a perigo de morte, para que venham com paz ao Senhor, tendo feito sua confissão ao presbítero ou ao diácono, como ele diz no mesmo lugar. Esse dar a paz nada mais é do aque aquilo que, hoje em dia, é chamado de remissão plenária, como fica claro para quem olha atentamente.

Portanto, podemos concluir que os cânones só devem ser impostos aos vivos, e entre estes, só aos sãos e robustos, sim, só aos preguiçosos e aos que não querem agir melhor espontaneamente. Por certo eu não teria exposto isso tão amplamente se não soubesse que alguns afirmam, com extrema tenacidade, o contrário, que não podem provar de nenhuma maneira. Pois se quisesse tratar com pessoas inteligentes e eruditas, eu teria feito melhor se calasse ao invés de falar.

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Tese 9
Por isso o Espírito Santo nos beneficia através do papa quando este, em seu decreto, sempre exclui a circunstância da morte e da necessidade.
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Esta tese é, antes, uma prova da tese precedente. Pois é certo que, se o sumo pontífice quer excetuar os casos de necessidade temporal, [ele o quer] muito mais [nos casos de] necessidade eterna. É para esta que o ser humano vai através da morte, ao passo que uma pessoa doente ou legalmente impedida só é retida por uma incapacidade temporal. Sim, mesmo que o sumo pontífice não excetue a necessidade, ainda assim se entende que ela está excetuada, porque a necessidade não tem lei. Ora, a morte é a mais extrema necessidade e o último e maior de todos os impedimentos.


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Tese 10
Agem mal e sem conhecimento de causa aqueles sacerdotes que reservam aos moribundos penitências canônicas para o purgatório.
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Também esta tese é um corolário evidente da oitava. Certamente existem pessoas que perguntam com espanto se os sacerdotes fazem tais coisas. Sem dúvida que fazem. Todavia, como isso significa dar mais peso à obediência aos cânones do que à obediência ao chamado de Deus, e preferir as mais baratas obras dos cânones ao valor da preciosíssima morte dos cristãos, não sei se aqueles que estão imbuídos dessa opinião possuem a regra da fé verdadeira.

2. É conhecido e freqüentemente [afirmado] por insignes autores na Igreja: Se Deus levasse uma pessoa ao êxtase ou a uma iluminação singular justamente em meio às obras de obediência eclesiástica, então a pessoa seria obrigada a interromper a obra, deixar de lado a obediência à Igreja e obedecer mais a Deus do que aos seres humanos. Sim, eles dizem que, mesmo nas horas canônicas, devemos, contra o mandamento da Igreja, abandonar a atenção às palavras se por acaso formos agraciados com uma iluminação e um arrebatamento celestes. Portanto, se as leis da Igreja deixam de vigorar nesses chamamentos, como não haveriam de cessar num tão grande chamamento e êxtase que é o da morte? A menos que talvez se deva seguir a multidão de tolos que de tal modo se apegam a suas obras cerimoniais, que, por causa delas, muitas vezes pospõem a obediência manifesta a Deus e aos seres humanos e crêem ter agido corretamente se fizeram apenas aquelas, mas nunca as outras.

3. A Igreja certamente seria muito ímpia para com Deus se retivesse em seu foro inferior a quem ele já chama para seu tribunal supremo. Ou quando é que o sumo pontífice tolera que um réu seja retido pela lei e pelos direitos do foro inferior de um bispo ou prelado, depois de ter sido chamado a comparecer perante seu foro? Acaso exige ele de seus subordinados o que ele mesmo, como ser humano, não permite a seu Deus, que é superior a ele? Então um ser humano fecha a mão de Deus, se um ser humano não pode fechar a de outro ser humano? Longe seja! Ora, se ele impõe cânones ao moribundo, certamente está claro que o julga e pune segundo seu foro.

Assim, são essas as quase 20 razões que me levaram a duvidar - não sem ponderação, como espero - quanto a esse assunto das penas canônicas, ao passo que no lado contrário não há passagem [da Escritura], nem cânone, nem argumento racional, nem uso universal da Igreja, mas tão-somente o abuso de algumas pessoas.


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Tese 11
Essa erva daninha de transformar a pena canônica em pena do purgatório parece ter sido semeada enquanto os bispos certamente dormiam.
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Aqui rogo que ninguém pense que eu esteja levantando uma calúnia contra os reverendíssimos bispos ao afirmar que eles dormiram. Essas palavras não são minhas, mas do evangelho, só que lá não está colocado o nome dos bispos, mas dos seres humanos. Não obstante, é certo que por "seres humanos" ele entende as autoridades e os dirigentes da Igreja, a não ser que o interpretemos tropologicamente como o espírito e a mente de toda pessoa sobre seu corpo. Por conseguinte, os pontífices na verdade não ensinam isso à Igreja, porque, como eu disse, não temos nenhum cânone, nenhuma determinação dos cânones a partir dos quais isso possa ser ensinado. Assim sendo, é em vão que se esforçam alguns canonistas quando procuram mostrar de que espécie são os anos, dias e quadragésimas no purgatório, pois na verdade não os há, ou, pelo menos, não se pode provar que os haja. O erro provém do fato de que só são obrigatórios na terra. É como alguém que, mudando de município, também muda, ao mesmo tempo, de direitos municipais. Se deve alguma coisa, é obrigado a saldar [a dívida] antes de mudar. Portanto, absolutamente nada deve ser imposto aos moribundos, e eles também não devem ser remetidos ao purgatório com o resto da penitência (como diz Gérson em certo lugar); antes (como ele ensina melhor em outra parte), devem assumir a morte com firmeza e de bom grado, de acordo com a vontade de Deus.

Aqui temos que examinar aquela invencionice e fútil cavilação com que querem nos assustar como as criancinhas com as máscaras, dizendo que, como o sacerdote não conhece a medida de contrição da pessoa a ser absolvida e, por isso, talvez não imponha uma satisfação tão grande quanto a justiça de Deus o exige, é necessário satisfazer também por isto, seja através de uma obra própria, seja através de indulgências.

1. Vê como fazem soar suas palavras nuas, sem qualquer prova, como oráculos [divinos], embora profeta diga: "Deus não dirá uma palavra sem revelar seu segredo aos seus servos, os profetas." [Am 3.7]. Também não é crível - pois ele é o nosso Deus, que nos ensina as coisas úteis, como diz pelo profeta - que não nos revelasse, em qualquer parte, também esta exigência de sua justiça.

2. Não sei se os que assim falam querem transformar Deus num usuário ou num mercador, como alguém que não remite gratuitamente a menos que se lhe preste uma satisfação como pagamento. Porventura querem que negociemos a respeito de nossos pecados com a justiça de Deus, perante a qual pessoa alguma é justificada?

3. Se isto é assim, por que então o papa concede absolvição plenária, já que, da mesma maneira, não conhece a medida da contrição, nem pode, ele mesmo, completar a imperfeição da contrição? A contrição perfeita, porém não necessita da absolvição dele. Ele também não tem um poder de gênero diferente do que um outro sacerdote, mas sim de outra quantidade, porque remite os pecados de todos, ao passo que os outros [sacerdotes] remitem de alguns; tanta satisfação quanta eles podem remitir para algumas pessoas, ele pode para todas, e nada mais. Do contrário a Igreja seria um monstro, constituída de diversos gêneros de poder.

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Tese 12
Antigamente se impunham as penas canônicas não depois, mas antes da absolvição, como verificação da verdadeira contrição.
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Esta décima segunda tese prova novamente a oitava, pois as penas canônicas são de tal forma temporais, que têm como seu fim a própria absolvição. Como, porém, todo moribundo deve ser absolvido (as demais condições sendo iguais), evidencia-se que não devem ser impostas [penas], mas, antes, que também as [já] impostas e aquelas a serem impostas devem ser relaxadas. Se aquele antigo costume da Igreja tivesse sido conservado até hoje, esse erro não teria surgido. Agora, contudo, visto que a absolvição precede as penas, aconteceu que, para prejuízo da absolvição, remetem a pessoa não absolvida para a morte e cometem algo assim como uma monstruosidade a não absolverem [mesmo] concedendo absolvição e ao ligarem a pessoa absolvida com a mesma palavra [com que a absolvem].

1. A tese é provada a partir do próprio uso da Penitência solene, descrita nos cânones, do qual ainda temos um exemplo ou ainda resta um vestígio na Penitência em caso de homicídio. Pois por que, neste caso, absolvem da pena a pessoa que vive e não a remetem a outras [penitências] a serem feitas em vida, enquanto que são tão rígidos no caso dos moribundos?

2. Assim, escreve o B. Jerônimo, foi perdoada sua Fabíola. Assim o B. Ambrósio absolveu seu Teodósio. Por fim, em ninguém se lê isto com maior freqüência do que no glorioso mártir Cipriano, no livro III de suas cartas. A mesma coisa [se lê] na História eclesiástica e na História tripartida. Da mesma forma, em Dionísio, na Hierarquia eclesiástica, é descrito o estado dos penitentes e dos energúmenos. Em todos estes casos vemos que naquela época os pecadores não eram aceitos para graça e absolvição antes de terem feito penitência.

3. Também Cristo só absolveu Maria Madalena e a mulher adúltera após lágrimas, unção e uma aflição sobremodo veemente e humilde.

4. Lemos em Gn 44 que José afligiu seus irmãos com muitas tentações para verificar se sua afeição por ele e Benjamim era verdadeira. Quando descobriu isso, deu-se a conhecer a eles e os recebeu em graça.


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Tese 13
Através da morte, os moribundos pagam tudo e já estão mortos para as leis canônicas, tendo, por direito, isenção das mesmas.
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Esta tese conclui o que foi dito acima e é suficientemente evidente. Pois seria uma coisa muito estranha se o moribundo fosse desligado de todas as obras, coisas, leis, pessoas e além disso das próprias leis de Deus - a saber, em que se ordenam esmola, oração, jejum, cruz, trabalho e tudo o que pode ser feito pelo corpo -, por fim, até mesmo das obras do santo amor ao próximo (que é o único que nunca morre), e que a única coisa da qual não possa ser desligado sejam os canônes. Então o cristão seria mais miserável do que todos os gentios, porque, mesmo morto, as leis dos vivos o atormentariam, ao passo que é, antes, uma pessoa que, mesmo entre os mortos, deve ser livre por meio de Cristo, em que ele vive.

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Tese 14
Saúde ou amor imperfeito no moribundo necessariamente traz consigo grande temor, e tanto mais, quanto menor for o amor.
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Isso se torna evidente através de 1 Jo 4.18: "No amor não existe medo. O amor perfeito lança fora o medo, pois o medo tem castigo." Portanto, se o amor perfeito lança fora o medo, é necessário que o amor imperfeito não o lance fora e que, por isso, haja medo com o amor imperfeito. Mas onde está esse amor perfeito? E (para fazer alguma pequena digressão) quem não tem medo da morte, do juízo, do inferno? Pois, por mais santa que seja uma pessoa, nela há restos do velho ser e do pecado, e, neste tempo, os filhos de Israel não conseguem destruir completamente os jebuseus e cananeus e demais gentios. Permanece [sempre] o vestígio do velho Adão. Esse velho ser, porém, é erro, concupiscência, ira, temor, apreensão, desespero, má consciência, horror da morte, etc. Essas coisas são [características] do ser humano velho e carnal. Elas diminuem no novo ser humano, mas não são extinguidas até que ele mesmo seja extinguido pela morte. Como diz o apóstolo: "Mesmo que o nosso ser humano exterior se corrompa, o interior é renovado de dia em dia." [2 Co 4.16]. Portanto, esses males dos restos do velho ser não são suprimidos pelas indulgências nem pela contrição iniciada; eles começam a ser suprimidos e, aumentando, são suprimidos mais e mais. Esta é a saúde espiritual, que não é outra coisa senão a fé ou o amor em Cristo.

Estando as coisas assim estabelecidas, a tese está suficientemente clara. Porque se alguém é surpreendido pela morte antes de alcançar o amor perfeito que expulsa o medo, necessariamente morre com medo e horror, até que o amor se torne perfeito e lance fora aquele medo. Ora, esse medo é justamente a consciência má e inquieta por causa da falta de fé. Pois nenhuma consciência é medrosa exceto a consciência que é ou vazia ou imperfeita em termos de fé. Pois assim diz também o apóstolo: "O sangue de Cristo liberta nossas consciências de obras mortas". [Hb 9.14]. E mais uma vez, em Hb 10.22: "Com os corações aspergidos de uma má consciência na plenitude da fé."

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Tese 15
Este temor e horror por si sós já bastam (não para falar de outras coisas) para produzir a pena do purgatório, uma vez que estão próximos do horror do desespero.
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Não falo nada sobre o fogo e o lugar do purgatório, não porque o negue, mas porque esse é um outro debate que não me propus agora; além disso, porque não sei onde é o lugar do purgatório, embora o B. Tomás creia que ele esteja debaixo da terra. Nesse meio-tempo, entretanto, fico com o B. Agostinho, a saber, que os receptáculos das almas são escondidos e estão fora de nosso conhecimento. Digo isso para que o herege begardo não imagine que obteve de mim [a afirmação de] que o purgatório não existe porque confesso que seu lugar é desconhecido, ou que a Igreja Romana erra por não rejeitar a opinião do B. Tomás. É-me certíssimo que existe um purgatório. Não me impressona muito o que blateram os hereges, visto que, já há mais de 1.100 anos, no livro IX de suas Confissões, o B. Agostinho ora por sua mãe e seu pai e pede que se ore [por eles], e sua santa mãe, ao morrer (como ele lá escreve), desejou que sua memória [fosse lembrada] junto ao altar do Senhor; mas ele conta que isso também aconteceu com o B. Ambrósio. E mesmo que na época dos apóstolos o purgatório não existisse, como se ensoberbece o altivo Begardo - acaso deve-se, por esta razão, crer num herege que nasceu mal-e-mal há 50 anos e pretender que a fé de tantos séculos seja falsa? Principalmente porque ele não faz outra coisa exceto dizer: "Não creio", tendo, assim, provado todas as suas [asserções] e rejeitado todas as nossas, como se também a madeira e a pedra não crescem. Mas isto fica para uma obra e um tempo apropriados.

Portanto, está admitido que há horror nas almas. Agora vou provar que esse horror é uma pena do purgatório, ou melhor, a máxima:

1. Todos admitem que as penas do purgatório e do inferno são as mesmas, diferindo apenas no que diz respeito à eternidade. Ora, a Escritura descreve as penas do inferno como sendo perturbação, pavor, horror e fuga, como diz Sl 1.4: "Os ímpios não são assim; são, porém, como a palha que o vento dispersa." Mas também em Jó e em Isaías e em muitos outros lugares os ímpios são comparados à palha e ao pó, arrastados e dispersos pelo turbilhão; nisto [a Escritura] certamente denota a horrível fuga dos condenados. Do mesmo modo Sl 2.5: "Então falará a eles em sua ira e em seu furor os conturbará." Em Is 28.16: "Quem confia nele não será envergonhado", isto é, não se precipitará, não se assustará nem fugirá perturbado e horrorizado, querendo dizer, em todo caso, que os que não confiam serão confundidos e tremerão. Pv 1.33: "Quem me der ouvidos repousará sem terror e gozará de abundância, sem temor dos males." E Sl 111[112].7: "Não se atemorizará de más notícias." Nestas e em outras passagens da Escritura a pena dos ímpios é expressa como terror, horror, pavor, temor, ao passo que a respeito dos piedosos se afirma o contrário. Por fim, também o B. Tiago diz que os demônios crêem e tremem. E Dt 28.65 afirma claramente que a pena do ímpio é pavor, dizendo: "O Senhor Deus te dará um coração pávido", etc. Pois se esse pavor não existisse, nem a morte, nem o inferno, nem pena alguma seriam molestos, como diz em Cantares: "O amor é forte como a morte, e duro como o inferno é o ciúme" [Ct 8.6], o que se mostrou suficientemente nos mártires, a tal ponto, que o Espírito diz quanto aos ímpios em Sl 13[14].5: "Eles tremeram de medo lá onde não havia medo", e em Pv 28.1: "O ímpio foge sem que ninguém o persiga, mas o justo, audacioso como um leão, estará sem terror." De outro modo, por que uma pessoa teme a morte e se aflige, enquanto que uma outra pessoa a despreza, senão porque a pessoa que interiormente não tem confiança na justiça teme onde não deve temer?

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Tese 16
Inferno, purgatório e céu parecem diferir da mesma forma que o desespero, o semidesespero e a segurança.
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Quem tiver considerado verdadeiras as duas teses precedentes admite facilmente também esta. Sim, como cremos que no céu reinam paz, alegria e segurança na luz de Deus, no inferno, contudo, pelo contrário, esbravecem desespero, dor e horrível fuga nas trevas exteriores, [que] o purgatório, porém, é o meio entre ambos, mas de tal forma que está mais próximo do inferno do que do céu (porque não tem alegria e paz, sim, em nada participam do céu, pois se considera que se trata da mesma pena como no inferno, diferente apenas da duração), está suficientemente claro que também nele há desespero, fuga, horror e dor. Todavia, quando mencionei o desespero acrescentei "semi", visto que, por fim, esse desespero cessa. No mais, enquanto está nele, a alma realmente não sente senão desespero, não porque ela desespere, mas porque está em tamanha perturbação e confusão de pavor, que não sente que tem esperança. Lá somente o Espírito socorre sua fraqueza o mais possível, intercedendo por elas com gemidos inexprimíveis. Pois o mesmo acontece aos tentados nesta vida, de modo que não sabem se esperam ou desesperam; sim, parece-lhes que desesperam, restando só um gemido por auxílio. A partir desse sinal, não são eles mesmos, mas outros que reconhecem que eles ainda têm esperança. No entanto, não vou falar mais longamente sobre esse assunto, que é sobremaneira abstruso, para que os vendedores de indulgências não acusem também a mim de estar falando sem provas, embora eu não afirme o que ignoro, como fazem eles, mas sim debata a pergunte. Ademais, sustento que a presumida certeza deles é dúbia e, mais ainda, nula.

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Tese 17
Parece necessário, para as almas no purgatório, que o horror diminua na medida em que cresce o amor.
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Também esta tese se apóia nas três precedentes. Não obstante, vamos explicá-la e propor (assim como começamos) três espécies de almas que partem. A primeira é constituída pelas almas completamente desprovidas de fé (isto é, condenadas). Na morte, elas são necessariamente tomadas do mais extremo horror e desespero, conforme aquela mensagem: "Os males se apoderarão do homem injusto na morte." [Sl 140.11]. E mais uma vez: "A morte dos pecadores é a pior de todas" [Sl 34.21], isto porque não têm confiança em Deus; por esta razão, a ira os apanha. A segunda espécie são as almas completamente cheias de fé e perfeitas (isto é, bem-aventuradas). Na morte, elas são necessariamente tomadas da maior segurança e alegria, conforme aquela passagem: "Ainda que cair, o jsuto não se quebrará, pois o Senhor põe sua mão debaixo." [Sl 37.24]. E de novo: "Preciosa é aos olhos do Senhor a morte dos seus santos." [Sl 116.15]. E mais uma vez: "Se for assaltado cedo demais pela morte, o justo estará em refrigério." [Sb 4.7]. E a causa de ambos é que o injusto encontra o que temia, sendo que ele sempre temia morte e castigo. O justo, porém, saciado desta vida, desejava ao máximo ser livrado; por esta razão, seu desejo lhe é concedido. Aquele não chegou à metade dos seus dias; este prolongou sua morada para além da consumação. Por isso, o que aquele teme, este busca, pois estão tomados de um desejo totalmente diferente; o que para aquele é supremo horror, para este é supremo ganho e alegria. A terceira espécie são as almas imperfeitas na fé, que diferem de modo variado, indo desde a fé plena até nenhuma fé. Ora, creio que ninguém nega que algumas almas partem com fé imperfeita; mesmo assim, abaixo demonstraremos isso mais amplamente. Portanto, como a imperfeição de fé não é outra coisa do que a imperfeita novidade da vida no Espírito e um resto ainda existente do velho ser da carne e de Adão (pois se fosse perfeita não temeria o castigo, nem morreria a contragosto, ou não partiria com afeição terrena por esta vida), parece claro que as almas não só precisam remover as penas, mas também acrescentar a perfeição da novidade e fazer desaparecer o resíduo do velho ser (isto é, o amor à vida e o temor da morte e do juízo). Ocorre que, por mais que a pena fosse removida (se fosse possível), a alma não ficaria sã através dessa remoção, assim como também nesta vida ninguém se torna melhor apenas pela remoção das penas, mas sim pela adição da graça e pela remoção do pecado. Por isso, também delas primeiramente deve ser retirado o pecado, isto é, a imperfeição da fé, da esperança e do amor.

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Tese 18
Parece não ter sido provado, nem por meio de argumentos racionais nem da Escritura, que elas se encontram fora do estado de mérito ou de crescimento no amor.
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Este é o meu mais forte argumento contra a opinião contrária: ela é ensinada sem prova. Nossa opinião, porém, certamente se apóia pelo menos naquela passagem que diz que sem o acréscimo da graça nenhum temor é expulso; este só é lançado fora pelo amor perfeito. Esta tese previne o argumento daqueles que poderiam dizer contra mim: "Elas estão fora do estado de mérito, razão pela qual as três teses precedentes são falsas." Eu, contudo, para continuar (assim como comecei) a opinar e debater, sem nada afirmar, digo: se o pugatório é tão-somente uma oficina para o pagamento de penas e as almas que nele estão são impuras por sua moderação (como penso eu) e não são purificadas desse vício, o purgatório se tornaria o mesmo que é o inferno, pois o inferno é onde existe pena com culpa que permanece. Ora, nas almas do purgatório existe culpa, a saber, o temor das penas e falta de amor, ao passo que o justo, segundo Is 8.13, nada deve temer senão apenas Deus; portanto elas pecam sem interrupção enquanto temem as penas e buscam repouso. Provo isso pelo fato de que buscam seu próprio interesse mais do que a vontade de Deus, o que é contra o amor. Se amam a Deus, amam-nos com o amor da concupiscência (isto é, com um amor vicioso), enquanto que deveriam, mesmo em suas penas, amar e glorificar a Deus e suportar com firmeza. Mas, para também afirmar alguma coisa em meio a tantos espinhos dos debates, confesso francamente que creio que nenhuma alma é redimida das penas do purgatório por causa de seu temor, até que ponha de lado o temor e comece a amar a vontade de Deus em tal pena, e a ame mais do que teme a pena, sim, até que ame unicamente a vontade de Deus, mas vilipendie a pena ou até a ame na vontade de Deus. Porque é necessário amar a justiça antes de ser salvo. A justiça, porém, é Deus, que opera essa pena. Depois, há aquela palavra de Cristo: "Quem não toma (isto é, carrega de bom grado e com amor) a sua cruz e me segue, não é digno de mim." [Mt 10.38] Ora, a cruz das almas é aquela pena. Sendo as coisas assim, e as reputo sumamente verdadeiras, diga quem puder de que forma esse amor das penas pode substituir o temor sem uma nova infusão da graça. Eu confesso que não sei, a menos que digas que o purgatório não tem terror das penas e, por isso, não é semelhante ao inferno, contra o dito anteriormente; mas então é em vão que oramos por aqueles que, conforme ouvimos, querem e amam suas penas, sem temor.

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Tese 19
Também parece não ter sido provado que as almas no purgatório estejam certas e seguras de sua bem-aventuranças, ao menos não todas, mesmo que nós, de nossa parte, tenhamos plena certeza.
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Pois nós, porque cremos que nenhuma alma vai ao purgatório a menos que pertença ao número daquelas a serem salvas, estamos certos da bem-aventurança delas, assim como estamos certos da salvação dos eleitos. Mesmo assim, não impugno muito se alguém afirma que elas estão certas [de sua bem-aventurança]. Eu digo [apenas] que nem todas estão certas. Mas como todo o assunto das almas no purgatório é sobremaneira abscôndito, explico a tese mais persuadindo do que demonstrando.

1. Em primeiro lugar, a partir das afirmações anteriores: se a pena do purgatório é aquele pavor e horror da condenação e do inferno, todo pavor, porém, torna o coração perturbado, incerto, privado de conselho e auxílio, e tanto mais quanto mais intenso e inopinado for. Ora o pavor das almas é o mais intenso e inopinado de todos, como foi dito acima e como diz Cristo: "Aquele dia sobrevém como um laço." [Lc 21.34]. E o apóstolo: "O dia do Senhor virá como ladrão de noite. [2 Pe 3.10; 1 Ts 5.2]. Por esta razão, é muito provável que, por causa de sua perturbação, elas não saibam em que estado estão, se condenadas ou salvas; sim, parece-lhes que já estão a caminho da condenação, que já estão descendo ao inferno e que, em verdade, já estão nas portas do inferno, como diz Ezequias. Mas também 1 Rs 2.6 diz: "O Senhor faz descer aos infernos e faz subir." Portanto, não sentem outra coisa senão que sua condenação está começando, só que sentem que a porta do inferno ainda não se fechou atrás delas e também não abandonam o desejo de auxílio, ainda que este não seja visível em parte alguma. Pois assim falam os que o experimentaram. Façamos uma comparação: suponhamos que alguém vem inopinadamente ao juízo da morte, caindo, por exemplo, nas mãos de salteadores, que o ameaçam de morte de todos os lados, ainda que tenham decidido aterrorizá-lo, não matá-lo. Neste caso, eles estão certos de que ele viverá, ele mesmo, contudo, nada mais vê exceto a morte iminentíssima e, por isso mesmo, já está morrendo. A única coisa que lhe resta é o fato de ainda não ter morrido e poder ser redimido da morte, mas não sabe de onde (pois vê que aqueles podem, porém não querem). Assim sendo, ele em quase nada difere de um morto. O mesmo parece acontecer no caso do medo da morte eterna, visto que não sentem outra coisa senão que a morte eterna os ameaça de toda parte. Assim canta a Igreja por eles: "Arranca suas almas da porta do inferno e liberta-as da goela do leão, para que o inferno não as engula", etc. O único conhecimento que lhes resta é que Deus pode redimi-los. No entanto, parece-lhes que ele não quer [fazê-lo]. Os condenados, porém, imediatamente acrescentam a blasfêmia a esse mal, ao passo que aqueles acrescentam apenas queixa e gemido inexprimível, auxiliados pelo Espírito. Pois aqui o Espírito de Deus paira por sobre as águas, onde há trevas sobre a face do abismo. Mas sobre isso [falei] mais amplamente acima.

[...]

De novo se objeta: "Se as almas suportam as penas de bom grado, por que oramos por elas?" Respondo: se não as suportassem de boa vontade, certamente estariam condenadas. Mas será que por isso não devem desejar orações? Pois também o apóstolo desejou que fizessem orações por ele, para que fosse livrado dos descrentes e se lhe abrisse uma porta à palavra. Não obstante, era ele quem, cheio de toda confiança, se gloriava de desdenhar a morte. Mesmo que as almas não desejassem orações, é nosso dever condoer-nos de seu sofrimento e socorrê-las através da oração, assim como a quaisquer outros, por mais corajosamente que sofram. Depois, como as almas não sofrem tanto com a pena presente quanto com o horror da perdição iminente que as ameaça, não é de admirar que desejem intercessão, para que perseverem e não se tornem faltas de confiança, tendo em vista que, como eu disse, estão incertas quanto ao seu estado e não temem tanto as penas do inferno quanto o ódio de Deus que existe no inferno, assim como é dito: "Na morte não há quem se lembre de ti; no inferno quem se confessará a ti?" [Sl 6.5]. Assim é evidente que não sofrem por temor da pena, mas por amor da justiça, como dissemos acima. Pois ela têm mais medo de não louvar e amar a Deus (o que aconteceria no inferno) do que de sofrer. Toda a Igreja ajuda, com razão, esse seu santíssimo, porém ansiosíssimo desejo tanto quanto pode, principalmente porque também Deus quer que elas sejam auxiliadas por meio da Igreja. E aqui finalmente chegamos ao fim desse tão obscuro e dúbio debate sobre as penas das almas. Não invejarei quem puder exibir coisa melhor, contando que o faça apoiado em melhores passagens da Escritura e não obnubilado pelas fumosas opiniões de seres humanos.


Tese 20
Portanto, sob remissão plena de todas as penas o papa não entende simplesmente todas, mas somente aquelas que ele mesmo impôs.
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Esta tese eu debato, mas ainda não a defendo com pertinácia. Minhas razãos são:
1. A primeira [provém] do que foi dito em relação à tese 5: só a pena canônica é remitida pelo poder das chaves. Por isso, esta tese é um corolário daquela; negada aquela, é negada também esta.

2. A segunda razão [é derivada] do primeiro estilo do pontífice, que diz: "Relaxamos misericordiosamente as penitências impostas." Logo, não relaxa as não impostas por ele ou pelos cânones. Creio que aqui não devemos nos preocupar com a invencionice arbitrária de algumas pessoas que dizem: Quando o pontífice não acrescenta esta cláusula a respeito das penitências impostas, então deve-se entender simplesmente a remissão de todas as penas. Eu diria: se ela não é acrescentada, subentende-se, mesmo assim, que é acrescentada como cláusula nescessária e pertencente à essência do estilo; ou eles que provem com algum texto o que dizem.

3. Chego a um argumento costumeiro, mas que é o mais forte de todos, e pergunto: por meio de que autores pretendem eles provar que também outras penas do que as canônicas são removidas pelas chaves? Apresentam-me Antonino, Pedro de Palude, Agostinho de Ancona, Capreolo. Depois também o sumista Ângelo refere-se a seu Francisco Maronis, que levou a compra de indulgências a tal ponto, que ousou chamá-la de meritória, se agrada a Cristo. Como se, de fato, essas pessoas fossem de tal espécie e grandeza, que qualquer coisa que pensaram devesse ser imediatamente incluída entre os artigos de fé. Na verdade, devem ser mais repreendidos os que, para nossa ignomínia e para injúria daqueles, alegam como afirmações as coisas que aqueles, por causa de sua piedosa intenção, [apenas] opinaram, não dando absolutamente nenhuma atenção àquele fiel conselho do apóstolo: "Provai todas as coisas, retende o que é bom." (1Ts 5.21).

[..]

4. A quarta razão é a seguinte: no capítulo cum ex eo, li. V. de pe. et re., se diz: "Pelas indulgências a satisfação penitencial é enfraquecida." Embora o papa diga essa palavra mais por dor do que por graça, os canonistas a entendem como reza. Logo, se a satisfação penitencial é enfraquecida, é evidente que unicamente a pena canônica é remitida, já que a satisfação penitencial não é outra coisa do que a terceira parte da Penitência eclesiástica e sacramental. Pois a satisfação evangélica em nada diz respeito à Igreja, como expusemos acima.

Se alguém me objetar que o papa não nega que também outras penas perdem sua força, mas que apenas afirma e que não fala de maneira exclusiva quando diz: "A satisfação penitencial perde sua força", respondo: prova, então, que ele também relaxa outras e que não fala de maneira exclusiva. Como não o fazes, eu provo que ele fala de maneira exclusiva através do capítulo Cum ex eo, supracitado, onde diz que aos questores de esmolas não é permitido propor ao povo nada além do que está contido em suas cartas. Ora, nada está contido em qualquer carta apostólica além de remissões da satisfação sacramental, como diz o próprio papa: A satisfação penitencial perde sua força por meio de indulgências indiscriminadas e supérfluas. Mais ainda: com essa palavra o papa restringe as indulgências mais rigidamente ainda, pois se só as indulgências supérfluas enfraquecem a satisfação sacramental, então as moderadas e legítimas não enfraquecem nem mesmo a própria satisfação penitencial, muito menos qualquer outras penas. Mas essas coisas não pertencem à minha jurisdição ou profissão. Os canonistas que se ocupem disso.


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Tese 21
Erram, portanto, os comissários de indulgências que afirmam que a pessoa é absolvida de toda pena e salva pelas indulgências do papa.
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Esta tese eu afirmo inteiramente e demonstro.
Pois resta pelo menos a terceira pena, isto é, a evangélica, sim, também a quinta, a saber, morte e doença, e em minutos aquela que é a maior de todas, a saber, o horror da morte, tremor da consciência, fraqueza de fé, pusilanimidade do espírito. Comparar estas penas com as remidas por indulgências é como comparar uma coisa com sua sombra. Contudo, também não é intenção do papa que eles fabulem tão frívola e impunemente, como fica claro a partir do capítulo Cum ex eo.

Se dissessem: "Também nós não dizemos que essas penas são suprimidas pelas indulgências", respondo: por que, então, não instruis o povo para que este saiba que penas tu remites, mas gritas que são remitidas absolutamente todas as penas que uma pessoa deve pagar perante Deus e a Igreja por seus pecados? Como é que o povo vai compreender por si mesmo se falas de modo tão obscuro e liberal?


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Tese 22
Com efeito, ele não dispensa as almas no purgatório de uma única pena que, segundo os cânones, elas deveriam ter pago nesta vida.
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Não defendo esta tese mais extensamente do que a oitava, da qual flui como corolário, pois os cânones penitenciais não se estendem à outra vida. Porque toda pena temporal é transformada na pena da morte; mais ainda: por causa da pena da morte, ela é suprimida e deve ser suprimida. Sim, imagina (para argumentar mais extensamente) que a Igreja Romana fosse tal qual ainda era na época do B. Gregório, quando não estava sobre outras Igrejas, pelo menos não sobre a da Grécia. [Neste caso,] claro está que as penas canônicas não obrigavam os gregos, assim como hoje não obrigam os cristãos não sujeitos ao papa, como na Turquia, Tartária e Livônia. Portanto, eles não têm necessidade de nenhuma dessas indulgências, e sim somente os que estão colocados no orbe da Igreja Romana. Logo, se elas não obrigam estes vivos, muito menos os mortos, que não estão sob Igreja alguma.


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Tese 23
Se é que se pode dar algum perdão de todas as penas a alguém, ele certamente só é dado aos mais perfeitos, isto é, pouquíssimos.
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Entendo esta tese com referência a penas de todo gênero e assim a defendo. Pois, como foi suficientemente dito, não há dúvida de que a remissão da satisfação penitencial pode ser dada a qualquer pessoa. Ou melhor: corrijo esta tese e digo que a remissão de todas as penas não pode ser dada absolutamente a ninguém, seja aos mais perfeitos, seja aos imperfeitos. E provo: pois mesmo que Deus não imponha aos mais perfeitos os flagelos ou a quarta espécie de penas, pelo menos não a todos e sempre, permanece, não obstante, a terceira, a saber, a evangélica, sim, também a quarta, isto é, a morte e as penas que estão relacionadas com a morte. Pois mesmo que Deus pudesse tornar todos perfeitos na graça, talvez sem penas, ele não decidiu fazê-lo; decidiu, isto sim, tornar todos conformes à imagem de seu Filho, isto é, à cruz. Mas que necessidade há de tantas palavras? Por mais magnificamente que se exalte a remissão das penas, o que, pergunto eu, se consegue junto àquela pessoa que tem ante os olhos a morte, bem como o temor da morte e do juízo? Se prega a esta pessoa toda outra remissão, porém não se concede que estas sejam remitidas, não sei se traz qualquer consolo. Portanto, atende ao horror da morte e do inferno e, querendo ou não, absolutamente não te preocuparás com remissões de penas. Assim, as indulgências serão vilificadas não por nosso esforço, mas por uma necessidade objetiva, já que não suprimem o temor da morte.


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Tese 24
Por isso, a maior parte do povo está sendo necessariamente ludibriada por essa magnífica e indistinta promessa de absolvição da pena.
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Também esta tese eu afirmo e sei que assim acontece. Pois eu mesmo ouvi muitas pessoas dizerem que não entenderam de outra maneira senão que, através das indulgências, saem voando sem qualquer pena. Não é de admirar, pois aqueles escrevem, lêem, proclamam que sairá voando imediatamente quem adquirir indulgências e morrer antes de cair de novo em pecado. Eles dizem tudo isso como se não existissem senão pecados atuais, e como se o fomes remanescente não fosse nenhuma impureza, nenhum impedimento, nenhum meio que retardasse o ingresso no reino. Pois, a menos que ele seja curado, é impossível entrar no céu, mesmo que não haja pecado atual. É que nada inquinado entrará. Em conseqüência, o próprio horror da morte, por ser um vício do fomes e um pecado, mesmo por si só impede a entrada no reino. Porque quem não morre de bom grado não obedece ao chamado de Deus senão contra a vontade, e, nisto, não faz a vontade de Deus na exata medida em que morre contra a vontade, e peca na exata medida em que não obedece à vontade de Deus. Por isso é raríssimo quem, depois de todas as indulgências, não peque ainda na morte, exceto os que desejam ser livrados e chamam a morte. Assim sendo, para não discordar deles inteiramente, digo que quem estiver perfeitamente contrito, isto é, odiar a si mesmo e sua vida e amar sumamente a morte, sairá voando imediatamente, tendo sido remitidas suas penas. Mas trata de ver quantos serão estes.


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Tese 25
O mesmo poder que o papa tem sobre o purgatório de modo geral, qualquer bispo e cura têm em sua diocese e paróquia em particular.
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Esta é a blasfêmia que me tornou digno de mil mortes, a saber, conforme o juízo dos questores, para não dizer usurários. Mas antes de demonstrar esta tese quero falar sobre meu próposito. Em primeiro lugar, digo mais uma vez que aqui não debato no que diz respeito à opinião que viso através destas palavras (pois esta afirmo com constância, porque toda a Igreja a sustenta), mas no que diz respeito às palavras. Depois, também peço aos meus adversários que suportem minha dor, pela qual sou supliciado ao ouvir que na Igreja de Cristo são pregadas coisas que nunca foram escritas e estatuídas. Pois lemos que outrora pareceu aos santos pais perigosíssimo que seja ensinada qualquer coisa além da prescrição celeste, como diz Hilário. E o santo que interrompeu a fala de alguém que tão-somente usara uma palavra grega equivocadamente, dizendo "toma a tua cama e vai" ao invés de "toma o teu catre ou leito e vai", repreendendo-o numa coisa que em nada mudara o sentido. Creio que eles me devem justissimamente vênia por essa minha dor, visto que somos obrigados, sem jamais termos sido solicitados ou advertidos, a tolerar suas presunções, sendo que lhes apraz pregar as coisas que nos cruciam quando as ouvimos.

Não digo ou faço isso porque seja impudentemente arrogante ao ponto de crer que eu deva ser contado entre os doutos da santa Igreja, muito menos entre aqueles a quem compete estatuir ou rejeitar essas coisas. Oxalá eu merecesse algum dia tornar-me o último membro da Igreja! Antes, sustento o seguinte: embora na Igreja haja homens doutíssimos e igualmente santíssimos, tal é a infelicidade de nossa época, que mesmo tão grandes homens não podem socorrer a Igreja. Pois o que a reudição e o zelo piedoso conseguem hoje em dia foi suficientemente provado pelo infeliz fim dos doutíssimos e santíssimos homens que, sob Júlio II, esforçaram-se por reformar a Igreja através de um concílio instituído para esta necessidade. Existem, aqui e ali, também outros ótimos e eruditos pontífices que conheço, porém o exemplo de poucos impõe o silêncio a muitos. Pois o tempo é péssimo (como diz o profeta Amós); por isso, o prudente guardará silêncio naquele tempo. Por fim, temos hoje um ótimo pontífice, Leão X, cuja integridade e erudição são uma delícia para todos os bons ouvidos. Mas o que pode esse homem amabilíssimo fazer sozinho em meio a tanta confusão das coisas? Ele certamente merecia ser pontífice em tempos melhores ou que houvesse tempos melhores em seu pontificado. Em nosso tempo não merecemos ter por pontífice senão gente como Júlio II, Alexandre VI ou outros atrozes Mezêncios inventados pelos poetas. Pois dos bons hoje em dia até a própria Roma se ri, sim, Roma mais do que todas. Pois em que parte do orbe cristão zombam mais livremente até dos sumos pontífices do que naquela verdadeira Babilônia que é Roma? Mas chega disto. Visto que, além de inúmeras pessoas particulares, a Igreja tem pessoas doutíssimas também em suas cátedras, se quisesse ser considerado prudente, a exemplo delas, também eu me calaria. Mas é preferível que a verdade seja dita mesmo por estultos, por crianças, por ébrios, do que que ela seja totalmente silenciada, para que a confiança dos mais doutos e dos sábios fique mais animosa ao ouvirem a nós, povo rude, finalmente clamar por causa da excessiva indignidade da coisa, assim como diz Cristo: "Se eles se calarem, as pedras clamarão." [Lc 19.40]

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Tese 26
O papa faz muito bem ao dar remissão às almas não pelo poder das chaves (que ele não tem), mas por meio de intercessão.
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Não creio que seja necessário declarar mais uma vez o que debato ou que afirmo. Todavia, como em nosso tempo os inquisidores da depravação herética são tão zelosos que procuram obrigar com violência os católicos mais cristãos a se tornarem hereges, será oportuno dar uma explicação sobre cada sílaba. Pois não me é fácil ver que outra coisa fizeram João Pico de Mirândola, Laurêncio Valla, Pedro de Ravena, João Vesália e, ultimamente, por estes dias, João Reuchlin e Jacó de Etaples - que, contra a sua vontade e tendo uma boa opinião, foram obrigados a ter uma má opinião - senão que talvez tenham deixado de dar uma explicação sobre cada sílaba (como disse). Tamanha é, hoje em dia, a tirania de crianças e efeminados na Igreja. Assim pois, declaro mais uma vez que farei duas coisas nesta tese: primeiramente, debater a respeito do poder das chaves sobre o purgatório e provar a [opinião] negativa, até que alguém outro prove melhor a afirmativa; em segundo lugar, inquirir aquele modo da intercessão.

Provo o primeiro ponto da seguinte maneira:
1. Em primeiro lugar, através daquele difundido argumento do Ostiense, a saber: se as chaves se estendessem até o purgatório, poderiam esvaziá-lo, e o papa seria cruel por não fazê-lo.

Eles refutam este argumento da seguinte forma: o papa pode, mas não deve esvaziá-lo, a menos que haja uma causa justa e razoável, para não agir inconsideradamente contra a justiça divina. Creio que eles dificilmente apresentariam esta solução fria e negligente a menos que não advertissem no que falam ou julgassem que falam entre bezerros marinhos profundamente adormecidos. Assim acontece que de um absurdo se seguem vários. E é como diz o ditado: para parecer verdade, uma mentira precisa de sete outras.

Assim sendo, o argumento dificilmente poderia ser reforçado com mais vigor do que através de tal refutação. Pois perguntamos: qual será enfim o nome dessa causa razoável? Ora, consta que se dão indulgências por causa de uma guerra contra os descrentes, de uma construção sacra ou de alguma outra necessidade comum desta vida. No entanto, nenhuma dessas razões é tão importante, que o amor não seja incomparavelmente mais importante, mais justo e mais razoável. Se, pois, a justiça divina não é ofendida caso - para proteger os corpos dos fiéis e seus bens, ou por causa de construções inanimadas, ou por causa de um brevíssimo uso desta vida corruptível - se remitem tantos quantos quiser (mesmo que se incluam todos neste número, de modo que, assim, o purgatório também seja esvaziado), quanto mais ela não é ofendida se, por causa do santo amor, são redimidos todos. A menos que, por acaso, a justiça divina seja tão iníqua, ou talvez melancólica, que seja mais favorável ao amor demonstrado para com o corpo e o dinheiro dos viventes do que ao amor demonstrado para com as almas tão carentes, principalmente tendo em vista que socorrer as almas é uma coisa tão importante, que os fiéis devem preferir servir aos turcos e ser mortos corporalmente a que as almas não sejam redimidas. Se, pois, [o papa] redime um número infinito [de almas] e, talvez, por isso mesmo, todas, por causa daquilo que é menor, por que não também por causa daquilo que é o máximo, isto é, por causa do amor? Aqui, porém, quero aconselhar a eles, já que se meteram num aperto, que digam que não pode haver nenhuma causa razoável, para assim escaparem com segurança dessa objeção. Assim, se o papa pudesse no que diz respeito a ele, contudo não pode no que diz respeito à causa, pois não pode haver tal causa.

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Tese 27
Pregam doutrina humana os que dizem que, tão logo tilintar a moeda lançada na caixa, a alma sairá voando.
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Pregam doutrina humana, isto é, vaidade e mentiras, segundo aquele dito: "Todo ser humano é mentiroso" [Sl 116.11]; e mais uma vez: "Todo ser humano vivo é vaidade." [Sl 39.5]. Em minha opinião, esta proposição não necessita de prova. Contudo, ela é provada pela tese seguinte, pois a intercessão da Igreja é eficaz conforme a vontade de Deus e o mérito da alma. Por isso, mesmo que fosse verdadeira a opinião deles de que elas são proveitosas pelo modo da intercessão, não se segue que saem voando imediatamente.

1. Não é a intercessão que liberta, mas o entendimento e a acolhida da intercessão, pois elas são libertadas não pela oração da Igreja, mas pela obra de Deus.

2. Por natureza Deus age de tal forma que ouve depressa, porém tarda em dar, como se evidencia nas orações e doutrinas de todos os santos, para pôr à prova sua perseverança. Por isso, há uma grande distância entre a intercessão e seu atendimento e cumprimento.

3. Isto mesmo é dito de um modo novo, sem qualquer abonação, contra a proibição do cânone de que não deve ser dito nada além do que está contido nas cartas. Por conseguinte, eles não falam o que é de Deus e da Igreja, isto é, a verdade, mas suas próprias [idéias], isto é, mentiras.

4. Não há diferença entre quem fala algo falso cientemente e quem afirma ser certo o que não sabe ser certo. Pois assim também quem diz a verdade mente às vezes. Ora, eles sabem que as coisas agora ditas lhes são incertas; ainda assim, asseguram que são certas, como se fossem evangelhos. Com efeito, não podem provar que são certas por nenhuma passagem da Escritura ou argumento racional.

5. Então a intercessão seria melhor para o serviço de outrem - e ainda por acidente - do que para seu próprio serviço, porque não aproveita tanto a quem a faz quanto ao outro por quem é feita; sim, isto é peripatético, razão pela qual passo por cima disso, principalmente tendo em vista que eles ousaram admitir que a intercessão não aproveita a quem a faz, mas à alma [pela qual é feita], etc. Também eu poderia ridicularizar e zombar destas fábulas, assim como eles zombam da verdade por meio delas, mas desisto, para não parecer que proponho mais um dogma do que um problema.


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Tese 28
Certo é que, ao tilintar a moeda na caixa, podem aumentar o lucro e a cobiça; a intercessão da Igreja, porém, depende apenas da vontade de Deus.
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É estranho que eles não pregam o salubérrimo Evangelho de Cristo com tanto esforço e berreiro. O que torna o negócio suspeito é o fato de que parecem apreciar mais o lucro do que a piedade, a menos que porventura possam ser desculpados justissimamente pelo fato de ignorarem o Evangelho de Cristo. Portanto, como as indulgências não têm piedade, nem mérito, nem mandamento, mas apenas uma certa licença, mesmo que a obra pela qual são compradas seja piedosa, em verdade parece que, por elas, se aumenta mais o lucro do que a piedade, sendo tratadas tão amplamente e sozinhas, que o Evangelho, como algo mais vil, dificilmente é recitado.

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Tese 29
E quem é que sabe se todas as almas querem ser resgatadas do purgatório? Diz-se que este não foi o caso com S. Severino e S. Pascoal.
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Não li um escrito fidedigno a respeito dos dois, porém ouvi contar que eles poderiam ter sido libertos por seus méritos, se tivessem querido ser glorificados em grau menor. Por isso, preferiram suportar a diminuir a glória da visão. Mas nessas coisas cada um creia o que quiser, para mim tanto faz. Pois não neguei que as almas no purgatório pagam também outras penas do que as acima mencionadas. Eu quis, isto sim, [dizer] que, mesmo que essas penas fossem remitidas, elas não sairiam voando se também não fossem perfeitamente curadas na graça. Entretanto, poderia acontecer que, por excessivo amor a Deus, algumas não quisessem ser redimidas. A partir disso se torna verossímil que Paulo e Moisés puderam querer ser anátema e separados de Deus para sempre. Se estes estavam dispostos a fazer isso em vida, parece que não se deve negar que a mesma coisa possa ser feita por mortos. A respeito disso se encontra, nos sermões de Tauler, o exemplo de uma virgem que assim procedeu.


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Tese 30
Ninguém tem certeza da veracidade de sua contrição, muito menos de haver conseguido plena remissão.
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Digo isto segundo a opinião daqueles que querem que a contrição seja necessária para a remissão das penas e não vêem quão muitíssimo incertas tornam todas as coisas. A tese é suficientemente evidente, pois todos defendem a primeira parte; ora, a segunda segue-se necessariamente. No entanto, em minha opinião pode haver uma certa remissão das penas - a saber, das canônicas -, mesmo que alguém não fosse digno nem estivesse contrito. Não é a contrição, muito menos a certeza da contrição, que é exigida para a remissão das penas, porque a remissão subsiste mesmo que seja concedida a penas imaginadas, visto estar unicamente no poder do papa. Contudo, se eles - como também foi dito acima - querem que sejam remitidas outras penas do que [as impostas por] crimes - a saber, [por] quaisquer pecados mortais -, então, magnificando excessivamente as indulgências, fazem com que elas sejam nulas. Pois, se são incertas, as indulgências não são indulgências. Porém elas são incertas e se apóiam sobre a consciência da pessoa a ser absolvida, não sobre o poder das chaves, mas principalmente se apóiam também sobre a contrição por todos os pecados mortais, e não apenas pelos crimes manifestos, já que ninguém está certo de estar sem pecado mortal. Mas a pessoa pode estar certa de estar sem crimes, isto é, sem um pecado pelo qual possa ser acusada perante a Igreja, como dissemos acima. Por isso, nego que essa tese seja verdadeira, se falo de acordo com minha maneira de pensar. Todavia, eu a propus para que eles vejam a absurdidade de sua jactância, com a qual engrandecem as indulgências.


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Tese 31
Tão raro como quem é penitente de verdade é quem adquire autenticamente as indulgências, ou seja, é raríssimo.
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Falo novamente segundo o modo de pensar deles, para que vejam a temeridade, sim, a contradição de sua pregação licenciosa. Enquanto clamam que as indulgências aproveitam a tantas pessoas e, não obstantes, confessam que são poucas as que trilham o caminho estreito, eles nem mesmo enrubescem e não prestam atenção no que falam. Mas não admira. É que eles não assumiram o ofício de ensinar a contrição e o caminho estreito. Assim pois, digo minha opinião: embora poucos sejam contritos, muitos, sim, todos em toda a Igreja poderiam estar livres das penas dos cânones através da abolição dos cânones - como, aliás, agora em verdade estão.


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Tese 32
Serão condenados em eternidade, juntamente com seus mestres, aqueles que se julgam seguros de sua salvação através de carta de indulgência.
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Esta tese eu mantenho e demonstro:
Assim diz Jr 17.5: "Maldito é quem deposita sua esperança no ser humano e considera a carne como seu braço." Pois não temos qualquer confiança de salvação senão unicamente Jesus Cristo e, "abaixo do céu não é dado nenhum outro nome pelo qual importa que sejamos salvos", At 15. Fora, portanto, com a confiança em cartas mortas, no nome "indulgências", no nome "intercessão"! Em segundo lugar, como disse, as cartas e indulgências nada conferem de salvação. Elas apenas removem as penas, e tão-somente as canônicas, e nem mesmo todas as canônicas. Oxalá aqui a terra e toda a sua plenitude gemessem comigo e chorassem por causa da sedução do povo cristão que, em toda parte, não entende das indulgências de outra forma senão como sendo salutares e úteis para o fruto do Espírito! Também não admira, já que a verdade manifesta da coisa não lhe é exposta. Infelizes dos cristãos, que, no que diz respeito à salvação, não podem confiar nem em seus méritos nem em sua boa consciência! Ensinam-lhes a confiar num papel escrito e encerado. Por que eu não haveria de falar nesses termos? O que mais é dado ali, pergunto eu? Não é contrição, não é fé, não é graça, mas tão-somente [a remissão de] penas do ser humano externo, estabelecidas pelos cânones. E para digressionar um pouco: eu mesmo ouvi muitas pessoas que, tendo dado dinheiro e comprado cartas, nelas colocaram toda a sua confiança. Pois ou elas assim ouviram (como diziam) ou (como creio por causa da honra) entenderam que os pregadores de indulgências assim ensinam.

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Tese 33
Deve-se ter muita cautela com aqueles que dizem serem as indulgências do papa aquela inestimável dádiva de Deus através da qual a pessoa é reconciliada com Deus.
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Eu deveria chamá-los de hereges pestilentos. Com efeito, o que é mais ímpio e herético do que dizer que as indulgências do papa são a graça da reconciliação com Deus? No entanto, para reprimir minha cólera, quero crer, antes, que eles tenham dito ou proposto tais coisas não por malícia ou deliberadamente, e sim por mera ignorância e falta de erudição e inteligência. Mesmo assim, também existe temeridade no fato de, como gente tão indouta, eles não terem feito, antes, o trabalho de um boieiro, ao invés de assumirem a tarefa de ensinar as almas de Cristo. Ouçam, pois, esse boieiro grunhir suas palavras. Assim diz em seu livreco, depois de dividir as indulgências em quatro graças principais e em muitas outras menos principais: "A primeira graça principal é a remissão plenária de todos os pecados. Não se pode mencionar nada que seja maior do que esta graça, porque, por ela, o ser humano pecador e privado da graça divina alcança perfeita remissão e, de novo, a graça de Deus." É o que ele diz. Eu pergunto: que sentina de hereges alguma vez falou coisa tão herética? Já a partir desta passagem pode-se aprender por que acontece que o povo ouve coisas tão ímpias, embora eles digam que ensinam coisas santíssimas. Oxalá aqui estivessem o zelo e a eloqüência do divino Jerônimo! Causa-me vergonha uma temeridade tão grande, que esse tagarela não teve receio de publicar esse livreco em face de quatro ilustres universidades circunjacentes, como se os gênios lá existentes tivessem sido completamente transformados em fétidos cogumelos. Aflige-me o fato de que também nossos vizinhos hereges, os begardos, finalmente teriam uma oportunidade para acusar com razão a Igreja Romana, se ouvissem que tais coisas são nela ensinadas. Mas que esse imbecil autor talvez tenha dito isso não por malícia, e sim por ignorância, pode-se ver a partir do fato de dizer que "por ela (isto é, a primeira graça, a remissão plenária), o ser humano alcança perfeita remissão". O que quer dizer isto: "Pela remissão plenária ele alcança remissão plenária, e pela graça de Deus alcança a graça de Deus"? Acaso ele não sonha por uma febre ou sofre de um delírio? Mas volta a atenção ao sentido herético. Ele quer dizer, quanto a essa primeira graça, que não pode ser mencionado nada maior do que ela e que o ser humano privado da graça a obtém. Está claro que isso não pode ser entendido senão a respeito da graça justificante do Espírito e que ele mesmo não o entende de outra forma. Do contrário ela não seria aquilo em relação ao qual nada maior pode ser mencionado. Aliás, mesmo que falasse outras cosias sobre a graça justificante, ele falaria de maneira suficientemente ímpia, pois só Deus é aquilo em relação ao qual não se pode mencionar coisa maior. Com efeito, o B. Agostinho não [fala] assim com ele, mas diz que entre as dádivas criadas nada é maior do que o amor. Aqui, porém, ele mistura a graça de Deus e a graça do papa no caos de uma só palavra, como autor digno de tal opinião ou de tal erro.

Segue-se no mesmo livro: "Por essa remissão dos pecados também lhe são plenamente remitidas as penas a serem pagas no purgatório por causa de ofensa à divina majestade, e as penas de dito purgatório são completamente apagadas." Ouvimos um oráculo de Delfos: quem tudo ignora, absolutamente de nada duvida. Ele se pronuncia tranqüilamente acerca do poder das chaves sobre o purgatório. Mas já dissemos o suficiente sobre isso acima.

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Tese 34
Pois aquelas graças das indulgências se referem somente às penas de satisfação sacramental, determinadas por seres humanos.
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Esta tese está abundantemente clara a partir das teses 5 e 20 acima.


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Tese 35
Não pregam cristâmente os que ensinam não ser necessária a construção àqueles que querem resgatar almas ou adquirir breves confessionais.
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Por que, pergunto, eles dão aos seres humanos essa dilação, para perigo destes? E de que aproveita que lhes sejam pregadas tais coisas, ainda que fossem verdadeiras, senão que se busca o dinheiro e não a salvação das almas? Ora, como são ímpias e falsas, com muito mais razão devem ser rejeitadas. É certo que também eu permiti, mais acima, que possam ser remitidas as penas mesmo às pessoas que não estão contritas, o que eles negam. Aqui, inversamente, creio que deve ser negado o que eles afirmam. E tenho sobre os breves de confissão a mesma opinião como sobre as penas: em ambos os casos não se precisa de contrição, nem no que diz respeito à sua compra nem no que diz respeito ao seu uso, o que eles negam.

[...]

Dizem eles, no entanto, que essa redenção não se estriba na obra de quem redime, mas sim no mérito daquele a ser redimido. Respondo: quem disse isso? De onde é provado? Então por que aquele a ser redimido não é libertado por seu próprio mérito, sem a obra de quem redime? Mas então não cresceria o dinheiro cobiçado por causa da salvação das almas. Então por que não chamamos os turcos e os judeus, para que, junto conosco, também depositem seu dinheiro, não por causa de nossa cobiça, mas por causa da redenção das almas? O fato de não serem batizados parece não constituir um obstáculo, pois aqui não é necessário senão o dinheiro de quem dá, de forma alguma a alma de quem se perde. Pois essa doação só se estriba na alma a ser redimida. Creio que mesmo que um asno depositasse ouro, também ele redimiria; pois se exigisse alguma disposição, também a graça seria necessária, já que um cristão pecador desagrada mais a Deus do que qualquer descrente, e o zurrar não desfigura o asno tanto quanto a impiedade desfigura o cristão.

[...]


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Tese 36
Qualquer cristão verdadeiramente arrependido tem direito à remissão plena de pena e culpa, mesmo sem carta de indulgência.
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Do contrário estariam em perigo as pessoas que não tivessem tais cartas, o que é errado, já que estas não são ordenadas nem recomendadas, e sim livres. Também não pecam as pessoas que não fazem caso delas, nem estão, por isto, em perigo quanto à sua salvação. Isto se evidencia a partir do fato de que tais pessoas já estão no caminho dos mandamentos de Deus, e se por acaso alguma vez não lhes fosse dada tal remissão, mesmo assim ela lhes seria devida, como diz o papa. Aqui, porém, interpõe-se a inteligência agudíssima de certas pessoas que dizem que isso seria verdade se os cânones fossem penas impostas tão-somente pelo papa, mas que em verdade elas são declarações de penas infligidas por Deus. Convém que assim falem as pessoas que, de uma vez por todas, se propuseram perseguir a verdade com ódio perpétuo.

Em primeiro lugar, proclamam, como que a partir de um oráculo, que Deus exige uma pena satisfatória pelos pecados, quer dizer, uma pena diferente da cruz evangélcia (isto é, jejuns, trabalhos, vigílias), diferente da castigadora. É que eles não se referem a estas porque não podem negar que são remitidas tão-somente por Deus.

Em segundo lugar, a essa monstruosidade acrescentam uma maior, a saber, que os cânones declaram [a pena como] imposta [por Deus]. Logo, ao papa só cabe declarar, nunca, porém, impor e relaxar. Do contrário, contra a palavra de Cristo, nos ensinariam isto: "Tudo o que eu ligar tu desligarás."


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Tese 37
Qualquer cristão verdadeiro, seja vivo, seja morto, tem participação em todos os bens de Cristo e da Igreja, por dádiva de Deus, mesmo sem carta de indulgência.
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É impossível ser cristão sem ter Cristo. Se tem Cristo, tem-se, ao mesmo tempo, tudo o que é de Cristo. Pois diz o santo apóstolo em Rm 13.14: "Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo." Em Rm 8.32: "De que maneira não nos dará com ele todas as coisas?" E em 1Co 3.21s.: "Tudo é vosso, seja Cefas, seja Paulo, seja a vida, seja a morte." Em 1Co 12: "Vós não sois de vós mesmos, mas membros do membro." E em outras passagens, onde escreve que, em Cristo, todos nós somos um só corpo, um só pão, membros uns dos outros. E em Ct [2.16]: "O meu amado é meu, e eu sou dele.". É que pela fé em Cristo o cristão é feito um só espírito e unido com Cristo. Pois serão os dois uma só carne, o que é um grande mistério em Cristo e na Igreja. Visto, pois, que o Espírito de Cristo está nos cristãos, pelo qual se tornam irmãos, co-herdeiros, um só corpo e cidadãos de Cristo, como poderia não haver aí participação em todos os bens de Cristo? Pois também Cristo tem tudo o que é seu do mesmo Espírito. Assim sucede, pelas inestimáveis riquezas das misericórdias de Deus Pai, que o cristão pode gloriar-se e, com confiança, tudo arrogar-se em Cristo, a saber, que a justiça, a força, a paciência, a humildade e todos os méritos de Cristo são também seus pela unidade do Espírito a partir da fé nele, e, inversamente, que todos os seus pecados já não são mais seus, mas, pela mesma unidade, de Cristo, no qual todas as coisas também serão absolvidas. E é esta a confiança dos cristãos e a jovialidade de nossa consciência: pela fé, nossos pecados não são nossos, mas de Cristo, sobre o qual Deus colocou os pecados de todos nós; ele levou sobre si os nossos pecados; ele é o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. Inversamente, toda justiça de Cristo se torna nossa. Pois ele impõe sua mão sobre nós, e ficamos bem, e ele estende seu manto e nos cobre, bendito Salvador em eternidade, amém.

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Tese 38
Mesmo assim, a remissão e participação do papa de forma alguma devem ser desprezadas, porque (como disse) constituem declaração do perdão divino.
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Não que seja necessária a declaração feita nas cartas públicas de indulgências (pois é suficiente a declaração feita na confissão privada), mas ela não deve ser desprezada, já que, por meio dela, é tornada conhecida e confirmada também à Igreja a declaração feita privadamente. Com efeito, é assim que, creio eu, isso deve ser entendido. Quem tiver coisa melhor que o diga. Pois não vejo que outras coisas faria essa participação pública. Contudo, embora não negue que essa tese tenha sido aceita por todos (como creio), disse acima na tese 6 que não me agrada essa maneira de falar, [segundo a qual] o papa não faz outra coisa senão declarar ou confirmar a remissão divina ou participação. Pois, em primeiro lugar, isso desvaloriza por demais as chaves da Igreja, sim, torna de algum modo ineficaz a palavra de Cristo que diz: "Tudo o que", etc. É que "declaração" é módico demais. Em segundo lugar, porque todas as coisas serão incertas para a pessoa a quem é feita a declaração, ainda que aos outros ou à Igreja, exterior e publicamente, sua remissão e reconciliação fiquem certas.

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Tese 40
A verdadeira contrição procura e ama as penas, ao passo que a abundância das indulgências faz odiá-las, pelo menos dando ocasião para tanto.

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Toma uma pessoa verdadeiramente penitente e verás que ela procura tão ardentemente vingança de si mesma por causa da ofensa a Deus, que te obrigará a ter misericórdia dela, sim, [verás] que será necessário resistir a ela para que não se destrua, como muitas vezes lemos e ouvimos que aconteceu. O B. Jerônimo escreve que sua Paula foi assim, e escreve a mesma coisa a respeito de si mesmo. Para essas pessoas, nenhuma pena é suficiente; mais ainda: com o filho pródigo, invocam o céu e a terra e até o próprio Deus contra si, assim como fez Davi quando disse: "Suplico que tua espada seja voltada contra mim e contra a casa de meu pai." [2 Sm 24.17]. Portanto, creio haver dito com razão que as penitências canônicas são impostas tão-somente às pessoas que, por serem preguiçosas, não querem fazer coisa melhor ou, pelo menos, para examiná-las quanto à veracidade de sua contrição. Assim, fica claro quão difícil é, ao menos para os doutos, achar o meio-termo entre o ódio e o amor às penas, para ensinar o ódio a elas de tal maneira que, ainda assim, induzam as pessoas principalmente ao amor a elas. Contudo, como nada é difícil para os indoutos, nada impede que também isto lhes seja fácil. O Evangelho certamente ensina que não se deve fugir das penas nem relaxá-las, mas sim buscá-las e amá-las, porque ensina o espírito da liberdade e do temor de Deus até o desprezo de todas as penas. Porém é muito mais lucrativo e conveniente para as caixas dos questores que o povo tema as penas e haura o espírito do mundo e do temor na letra e na servidão, ao ouvir que algumas penas canônicas são uma coisa tão horrível, que se ensina que elas só podem ser evitadas com tanto esforço, com tanta despesa, com tanta pompa, com tão grandes cerimônias, como nem se ensina que o Evangelho deve ser amado.

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Tese 41
Deve-se pregar com muita cautela sobre as indulgências apostólicas, para que o povo não as julgue erroneamente como preferíveis às demais obras de amor.

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Eu diria o seguinte ao povo: Vede, irmãos, é preciso que saibais que existem três espécies de boas obras que se podem fazer gastando dinheiro. Em primeiro lugar e antes de mais nada, se alguém dá aos pobres ou empresta a seu próximo necessitado e, de modo geral, auxilia a quem sofre qualquer necessidade. Esta obra deve ser feita de tal maneira que se deve interromper mesmo a construção de igrejas e deixar de lado oferendas para [a aquisição de] vasos e ornamentos das igrejas. Depois que isso tiver sido feito, e não restando nenhum necessitado, então a segunda obra será contribuir, primeiramente, para nossas igrejas e hospitais em nossos países e para construções de utilidade pública. Depois, porém, que isto tiver sido feito, então, finalmente, se vos apraz, podeis dar, em terceiro lugar, também para a compra de indulgências. Pois quanto à primeira obra temos mandamento de Cristo, quanto à última, nenhum mandamento.

Se disseres: "Com essa pregação se juntará pouco dinheiro através das indulgências", respondo: creio que sim. Mas o que há de estranho nisso, já que, através das indulgências, os pontífices não buscam dinheiro, e sim a salvação das almas, como se evidencia nas que dão por ocasião da consagração de igrejas e altares? Por isto, por meio de suas indulgências eles não querem impedir coisas melhores, mas, antes, promover o amor.

Digo francamente que quem ensina o povo de outra forma e perverte essa ordem não é um doutor, mas um sedutor do povo; só que, por causa de seus pecados, às vezes o povo merece não ouvir a verdade ser pregada corretamente.


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Tese 42
Deve-se ensinar aos cristãos que não é pensamento do papa que a compra de indulgências possa de alguma forma ser comparada com as obras de misericórdia.

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Como eu disse acima, entendo o papa, conforme significa [a palavra], como pessoa pública, isto é, como nos fala por meio dos cânones. Com efeito, não existem cânones que afirmem que a dignidade das indulgências possa ser comparada às obras de misericórdia.

A tese, porém, é evidente: porque o mandamento de Deus tem uma dignidade infinitamente superior ao que também é permitido e de nenhum modo ordenado por um ser humano; pois lá existe mérito, aqui, nenhum.

Aqui se objeta: "Mas as indulgências são compradas por meio de uma obra piedosa, por exemplo, através de uma contribuição para uma construção ou para o resgate de cativos; logo, elas são meritórias."

Respondo: não falo da obra, e sim das indulgências, pois aquela obra poderia ter feita sem indulgências, já que não está necessariamente ligada a elas. As indulgências concedidas sem obra só tiram e nada conferem. Porém a obra sem as indulgências confere, pois lá recebemos o que é nosso, enquanto que aqui damos. Por esta razão, lá se serve à carne, aqui, ao Espírito; numa palavra: lá se satisfaz à natureza, aqui à graça. Por isso, as indulgências, tomadas em si mesmas, não são comparáveis a uma obra de misericórdia.

[...]

Do mesmo modo, é de se temer que através dessa perversão da ordem seja fomentada uma grande idolatria na Igreja. Pois se o povo é ensinado a contribuir para fugir das penas (o que, espero, não aconteça, mesmo que muitos talvez assim entendam), então está claro que não contribuem por causa de Deus, e o temor das penas ou a pena será o ídolo deles, a quem sacrificam desta maneira. Se isso acontecesse, haveria na Igreja um mal semelhante ao que houve outrora entre os romanos pagãos, quando serviam a Febre e as outras divindades fúteis e nocivas para não serem prejudicados. Por este motivo, aqui se deve vigiar em favor do povo e confiar tais negócios tão dúbios e perigosos apenas aos mais doutos.


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Tese 43
Deve-se ensinar aos cristãos que, dando ao pobre ou emprestando ao necessitado, procedem melhor do que se comprassem indulgências.

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Formulo esta tese assim por causa das pessoas rudes, já que ela se evidencia suficientemente a partir do que dissemos acima. Eu não sou o primeiro nem o último que sustenta esta tese (juntamente com as duas que a precedem e as duas que se seguem a ela); todos e toda a Igreja a sustentam, só que apenas o povo nunca a ouve. Talvez se tema que ele entenda depressa demais uma verdade tão manifesta e sólida. Pois também S. Boaventura, bem como todos os demais, ao tratar dessa matéria, fazem a si mesmos esta objeção: "Logo, as demais boas obras devem ser omitidas", e respondem: "De forma alguma, porque as demais boas obras são melhores no tocante à obtenção do prêmio essencial." Portanto, a tese é evidente, pois quem diz isto são aqueles que, não obstante, afirmam que as indulgências são um tesouro dos méritos de Cristo e da Igreja.


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Tese 44
Ocorre que através da obra de amor cresce o amor e a pessoa se torna melhor, ao passo que com as indulgências ela não se torna melhor, mas apenas mais livre de pena.

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Isto é evidente. Pois aí é dada tão-somente remissão das penas, e - como também todos concedem - as indulgências não efetuam mais do que suprimir as penas. Ora, a supressão da pena não torna a pessoa boa ou melhor no amor.


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Tese 45
Deve-se ensinar aos cristãos que quem vê um carente e o negligencia para gastar com indulgências obtém para si não as indulgências do papa, mas a ira de Deus.-----------------------
Pois tal pessoa perverte a ordem acima exposta, e contra isso diz João: "Se alguém vir seu irmão padecer necessidade e lhe fechar seu coração, como permanecerá nele o amor de Deus?" [1 Jo 3.17]. Nossos sofistas, porém, interpretam essa necessidade como necessidade extrema, a saber, para nunca ou rarissimamente dar oportunidade a que o amor se torne ativo, ao passo que eles mesmos, se estivessem em necessidade - não extrema, mas imediata -, quereriam receber auxílio; às outras pessoas, contudo, querem ajudar quando elas já expiaram. Realmente ótimos teólogos e cristãos, que não fazem às pessoas o que querem que lhes seja feito.


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Tese 46
Deve-se ensinar aos cristãos que a compra de indulgências é livre e não constitui obrigação.-----------------------

Eu já disse suficientemente acima que as indulgências pertencem ao número das coisas que são permitidas, mas não ao das que são úteis, assim como, na antiga lei, a carta de divórcio, o sacrifício de ciúme, e, na nova lei, processos e ações judiciais por causa dos fracos, sim, "por causa da vossa dureza" [Mt 19.8], diz Cristo. Todo aquele que fizer isso será antes tolerado do que recomendado. E mais: como diz a glosa no livro V, de pe. et re. Quod autem, também muitos outros fariam melhor se satisfizessem eles mesmos e não comprassem indulgências. Apenas criminosos têm necessidade de comprá-las.


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Tese 47
Deve-se ensinar aos cristãos que, se não tiverem bens em abundância, devem conservar o que é necessário para sua casa e de forma alguma desperdiçar dinheiro com indulgências.-----------------------

Pois o apóstolo diz: "Quem não cuida dos seus e principalmente dos de sua casa negou a fé e é pior do que o descrente." [1 Tm 5.8]. Porém são muitos os que não têm pão nem roupa de modo apropriado e, mesmo assim, induzidos pelo barulho e estrépito dos pregadores de indulgências, fraudam a si mesmos e causam sua própria penúria para aumentar a riqueza daqueles.


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Tese 48
Deve-se ensinar aos cristãos que, ao conceder indulgências, o papa assim como mais necessita, da mesma forma mais deseja uma oração devota a seu favor do que o dinheiro que se está pronto a pagar.-----------------------
Desta tese se rirão nossos senhores cortesãos da Cùria Romana, cônscios. Certo, todavia, é que, antes de mais nada, o pontífice deve desejar a oração de seus súditos, assim como também S. Paulo freqüentemente a desejou dos seus. E esta é uma razão muito mais justa para dar indulgências do que se fossem construídas mil basílicas. Isto porque o sumo pontífice, mais sitiado do que rodeado por tantos monstros de demônios e pessoas ímpias, não pode errar senão causando o maior mal de toda a Igreja, principalmente se ouvir com prazer a voz pestilenta de sua sereia [que diz]: "Não se diz presume que o ápice de tão grande celsitude erre"; da mesma maneira a que diz: "Todos os direitos positivos estão no escrínio de seu peito." Presume-se que ele não erra, mas é de se perguntar se essa presunção é boa; todos os seus direitos estão no escrínio de seu coração, mas é de se perguntar se seu peito é bom. É disto que se deve cuidar através da oração. Mas a respeito desse assunto o B. Bernardo [escreveu], da forma mais bela de todas, ao papa Eugênio em Da consideração.


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Tese 49
Deve-se ensinar aos cristãos que as indulgências do papa são úteis se não depositam sua confiança nelas, porém extremamente prejudiciais se perdem o temor de Deus por causa delas.-----------------------

Vê, pois, o perigo: as indulgências são pregadas ao povo diretamente contra a verdade da cruz e do temor de Deus, porque se lhes concede liberdade das penas e, depois, segurança dos pecados remitidos. E parece um sinal evidente de que as indulgências pregadas como tal jactância não provêm de Deus o fato de que o povo acorre a elas, as aceita e observa com mais disposição do que o faz em relação ao próprio santo Evangelho de Deus, para que seja provada a verdade: porque o que vem de Deus é desdenhado pelo mundo; outro vem em seu próprio nome, e a este o mundo aceita. A causa do erro são as próprias pessoas que ensinam tais fábulas, pregando-as com mais diligência e pompa do que o Evangelho; além disso, pregam a todos o que é para poucos. Pois, como ficou suficientemente claro acima, as vênias são relaxações, licenças, permissões e indulgências, e verdadeiras indulgências (se tomamos o significado rígido da palavra) são permissões molengas para cristãos delicados, frios, duros, isto é, mais de gibeonitas, carregadores de água e escravos do que dos príncipes e filhos de Israel.


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Tese 50
Deve-se ensinar aos cristãos que, se o papa soubesse das exações dos pregadores de indulgências, preferiria reduzir as cinzas a Basílica de S. Pedro do que edificá-la com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas.-----------------------

Pois assim, depois de terem imposto a toda ordem da vida cristã determinada quantia de dinheiro, nossos robustíssimos caçadores ensinam por fim também as mulheres a mendigar, mesmo contra a vontade do marido, e os frades mendicantes, mesmo contra a vontade de seus superiores, a arrebanhar dinheiro de qualquer parte, até que não haja absolutamente ninguém a quem reste um tostão que não dê para esta finalidade. Por fim, chegaram a exortar [as pessoas] a vender até suas roupas ou a emprestar dinheiro de qualquer lugar; diz-se que isso também aconteceu. Como as indulgências são o mais vil de todos os bens da Igreja, que não deve ser dado senão aos mais vis [membros] da Igreja, não sendo ainda nem meritório nem útil, mas, na maior parte, estremamente nocivo se as pessoas não são timoratas, sou de opinião que tal doutrina é digna de maldição e contrária aos mandamentos de Deus. Pois a mulher deve estar sob o poder do marido e nada fazer contra a vontade dele, mesmo que se tratasse de [algo] meritório, muito menos mendigar por causa de indulgências que talvez não lhe sejam necessárias. Além disso, os religiosos deveriam manter sua obediência, ainda que, em outra parte, [pudessem] obter a coroa do martírio. E o papa jamais pretende o contrário, mas sim seus falsos intérpretes. Que alguém outro bote para fora sua cólera; eu me contenho. Só digo uma coisa: ao menos trata de discernir a partir disso, prezado leitor, se, com suas pregações pestilentas, eles não procuram fazer com que o povo creia que nas indulgências estejam a salvação e a verdadeira graça de Deus. De outro modo, como as recomendariam tão ansiosamente que, por causa delas, tornam sem valor as obras meritórias e os mandamentos de Deus? Mesmo assim, até agora não são [considerados] hereges, ao ponto de se gloriarem de serem perseguidores de hereges.

Acaso o papa quis que, por causa de pedras e pedaços de madeira, os seres humanos entregues a seus cuidados sejam tosquiados até a pele viva, sim, que sejam imolados e lançados na perdição pelas pestilentas doutrinas desses ladrões e salteadores (como Cristo diz)? Era melhor ter aquele imperador que disse: "Um bom pastor deve tosquiar as ovelhas, mas não esfolá-las". Entretanto, eles não só as esfolam, mas as devoram em corpo e alma. Verdadeiramente, "a garganta deles é um sepulcro aberto, com suas línguas", etc. [Sl 5.9].


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Tese 51
Deve-se ensinar aos cristãos que o papa estaria disposto - como é seu dever - a dar àqueles muitos de quem alguns pregadores de indulgências extraem ardilosamente o dinheiro, mesmo que para isto fosse necessário vender a Basílica de S. Pedro.-----------------------

Assim o B. Ambrósio fundiu cálices para resgatar prisioneiros, e o B. Paulino de Nola se entregou a si mesmo como prisioneiro pelos seus. E é para isto mesmo que a Igreja tem o ouro, como consta nos decretos, que o tomaram do mesmo Ambrósio. Mas agora, bom Deus, quantos são os que levam árvores, sim, mesmo folhas para a floresta, e gotinhas para o mar, isto é, seus centavos para aquela bolsa, cujo ganho, para usar palavras de Jerônimo, é a religião de todo o mundo!


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Tese 52
Vã é a confiança na salvação por meio de cartas de indulgências, mesmo que o comissário ou até mesmo o próprio papa desse sua alma como garantia pelas mesmas.-----------------------
Também esta monstruosidade eles ousam proferir sem qualquer vergonha, para tirar dos seres humanos o temor de Deus e, por meio das indulgências, conduzí-los consigo até a ira de Deus, contra o dito do sábio: "Não queiras estar sem medo a respeito do pecado perdoado!" [Eclo 5.5]. E mais uma vez: "Quem discerne as [próprias] faltas?" [Sl 19.12]. Mas eles dizem: "Não abolimos o temor a Deus." Se a segurança [obtida] por meio das indulgências pode subsistir com o temor de Deus, é verdade que não o abolis, mas sim o povo, ao aceitar as cartas recomendadas com tão grande palavra de juramento. Se ele teme que as cartas não sejam suficientes perante Deus, como será verdadeira aquela gloriosa promessa de segurança? Se confia que são suficientes, como temerá? Maldito seja, em eternidade, todo discurso que infunde segurança e confiança em ou através de qualquer coisa exceto unicamente a misericórdia de Deus, que é Cristo. Todos os santos não só temem, mas também dizem em desespero: "Não entres em juízo com o teu servo, Senhor!" [Sl 143.2], e tu os fazes entrar, seguros através das cartas, no juízo dele. Por isso creio que não é completamente desprovida de verdade aquela fábula que certas pessoas inventaram contra tão desenfreados abismos de mentira e que diz: Um morto chegou ao inferno com cartas de indulgências e pediu liberdade por causa delas. Então o demônio veio ao seu encontro e, enquanto as lia, a cera e o papel se consumiram entre suas mãos (por causa do calor do fogo); e então o demônio o arrastou consigo para dentro do abismo.


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Tese 53
São inimigos de Cristo e do papa aqueles que, por causa da pregação de indulgências, fazem calar por inteiro a palavra de Deus nas demais igrejas.-----------------------

Porque é o ofício e a intenção do papa querer que antes de mais nada, sempre e em toda parte seja pregada a palavra de Deus, como sabe que lhe é ordenado por Cristo. Como, pois, se há de crer que ele se oponha a Cristo e a si mesmo? Mas os nossos ousam isto, assim como também ousam tudo.


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Tese 54
Ofende-se a palavra de Deus quando, em um sermão, se dedica tanto ou mais tempo às indulgências do que a ela.-----------------------

[Esta tese] é suficientemente evidente a partir da dignidade, sim, da necessidade da palavra de Deus, ao passo que a palavra das indulgências não é necessária nem muito útil.


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Tese 55
A atitude do papa é necessariamente esta: se as indulgências (que são o menos importante) são celebradas com um toque de sino, uma procissão e uma cerimônia, o Evangelho (que é o mais importante) deve ser anunciado com uma centena de sinos, procissões e cerimônias.-----------------------
Porque nada na Igreja deve ser tratado com maior cuidado do que o santo Evangelho, já que a Igreja nada tem de mais precioso e salutar. Por isso, o Evangelho também é a única obra que ele injungiu a seus discípulos tão repetidamente. E Paulo diz que não foi enviado para batizar, mas para pregar o Evangelho. Por fim, Cristo ordenou que o Sacramento da Eucarístia não fosse celebrado senão em sua memória. E Paulo em 1 Co 11.26: "Todas as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, anunciareis a morte do Senhor." Pois é melhor omitir o sacramento do que não anunciar o Evangelho, e a Igreja determinou que a missa não deve ser celebrada sem a leitura do Evangelho. Assim, pois, Deus dá mais importância ao Evangelho do que à missa, porque, sem o Evangelho, o ser humano não vive no Espírito; sem a missa, porém, ele o faz. Pois o ser humano viverá em toda palavra que procede da boca de Deus, como o próprio Senhor ensina mais amplamente em Jo 6. Depois, a missa reanima as pessoas que já estão no corpo de Cristo; mas o Evangelho, a espada do Espírito, devora as carnes, divide Beemote, tira o equipamento dos fortes e aumenta o corpo da Igreja. A missa a ninguém aproveita senão a que já está vivo; o Evangelho, absolutamente a todos. Por isso, na Igreja primitiva permitia-se aos energúmenos e catecúmenos estar presentes até depois do Evangelho, sendo então mandados para fora por aqueles que eram do corpo da missa, e também hoje os direitos permitem que os excomungados assistam à missa até depois do Evangelho. Assim como João precedia Cristo, da mesma forma o Evangelho precede a missa. O Evangelho prosterna e humilha; a missa dá graça aos humilhados. Portanto, fariam melhor se proibissem a missa.

[...]


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Tese 56
Os tesouros da Igreja, dos quais o papa concede as indulgências, não são suficientemente mencionados nem conhecidos entre o povo de Cristo.-----------------------

Esta é a segunda morte que mereci. Por isso, depois de já há muito haver afirmado muitas coisas tão manifestas que não necessitariam de protestação, agora preciso debater mais uma vez e, por isto, também protestar com uma última protestação neste debate. Portanto, aqui debato e busco a verdade; seja testemunha o leitor, seja testemunha o ouvinte, ou seja testemunha o próprio inquisidor da depravação herética.


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Tese 57
É evidente que eles certamente não são de natureza temporal, visto que muitos pregadores não os distribuem tão facilmente, mas apenas os ajuntam.
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[Esta tese] é suficientemente evidente através da experiência.


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Tese 58
Eles tampouco são os méritos de Cristo e dos santos, pois estes sempre operam, sem o papa, a graça do ser humano interior e a cruz, a morte e o inferno do ser humano exterior.
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O tema desta tese enraizou-se com excessiva profundidade e fixou-se profundamente em quase todos os mestres. Por esta razão, preciso demonstrá-las mais extensa e firmemente, e o farei com confiança.

Primeiramente, quanto aos méritos dos santos:
Eles dizem que nesta vida os santos realizaram muitas coisas além de uma obrigação, a saber, obras supererogatórias, que ainda não foram recompensadas, mas deixadas no tesouro da Igreja, às quais é feita uma compensação digna por meio das indulgências, etc. E assim pretendem que os santos tenham satisfeito por nós. Contra isto eu arguo o seguinte:

[...]

Não existem obras de santos que tenham permanecido sem recompensa, porque, segundo todos, Deus premia além do que é condigno. E Paulo diz: "Os sofrimentos do tempo presente não são condignos da glória futura", etc. [Rm 8.18].

[...]

Em segundo lugar, quanto ao mérito de Cristo:
Este não é o tesouro das indulgências - é sobre isto que debato. No entanto, [só] um herege nega que ele é o tesouro da Igreja, pois Cristo é o resgate do mundo e o redentor; por esta razão, verdadeiramente e tão-só ele é o único tesouro da Igreja. Nego, todavia, que ele seja o tesouro das indulgências, até que me ensinem [o contrário].

[...]


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Tese 59
S. Lourenço disse que os pobres da Igreja são os tesouros da mesma, empregando, no entanto, a palavra como era usada em sua época.
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[Esta tese] é suficientemente evidente para quem viu a legenda de S. Lourenço. Depois, hoje a palavra não é usada no sentido de que os pobres sejam chamados de tesouro da Igreja, mas assim denominamos o patrimônio de Cristo e de S. Pedro, o que certo palha - porém sem grão - de Constantino deu à Igreja. Por isso, também Sl 2.8, onde Deus diz a Cristo: "Pede-me, e te darei as nações por herança e as extremidades da terra por tua possessão", deve ser entendido como referindo-se às cidades e aos campos desde o Oriente até o Ocidente. Do contrário, se em nossa época alguém falasse de modo diferente das coisas da Igreja e das espirituais, ele nos seria um estrangeiro, embora também o B. Lourenço tenha chamado os bens da Igreja (mas não só eles) de riquezas.

Tese 60
É sem temeridade que dizemos que as chaves da Igreja, que lhe foram proporcionadas pelo mérito de Cristo, constituem este tesouro.

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Se esse mérito fosse chamado também de tesouro das indulgências, isto é, de poder das chaves, então o sentido é claro. Pois ninguém duvida que tudo o que foi dado à Igreja lhe foi dado pelo mérito de Cristo.


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Tese 61
Pois está claro que, para a remissão das penas e dos casos, o poder do papa por si só é suficiente.

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[Esta tese] é demonstrada a partir do próprio estilo do papa, que, ao ligar ou desligar, nunca menciona os méritos de Cristo, mas diz unicamente: da plenitude do poder, a partir de conhecimento seguro e de moto próprio.

2. Em segundo lugar, a partir da opinião comum a todos os que provam que as indulgências são dadas por força daquela palavra onde Cristo diz: "Tudo o que desligares", etc. [Mt 16.19]. Esta palavra, julgam eles, seria sem vigor se não concedesse o poder de dar. Por esta razão, também entendem que só o poder é suficiente, porém não provam o tesouro com qualquer passagem da Escritura, aduzindo esta passagem como se fora suficiente. Entretanto, ela se refere unicamente ao poder, e não à aplicação de méritos.

3. Do contrário, também em outras ligações e desligamentos dever-se-ia entender uma distribuição de méritos, a saber, quando, através de seu ofício sacerdotal, ele excomunga, absolve, ordena, exclui da ordem, determina, abroga, proíbe, dispensa, muda, interpreta. Pois em todas estas coisas se age por força desta palavra: "tudo o que". Se, pois, nestas coisas não é necessária uma distribuição de méritos, bastando só o poder das chaves, quanto mais na remissão de penas canônicas! É que tal remissão não é outra coisa do que uma absolvição de penas. Sim, se em algum lugar ocorre uma distribuição dos méritos de Cristo, ela deve acontecer principalmente na absolvição de um excomungado, pois aí um pecador é reconciliado com a Igreja e mais uma vez declarado participante dos bens de Cristo e da Igreja. Portanto, não existe nenhuma razão por que aquela palavra: "Tudo o que desligares" devesse incluir o tesouro de Cristo no caso das indulgências e não também em todos os outros desligamentos, já que se trata da mesma passagem, das mesmas palavras e do mesmo sentido nelas [contido].

[...]

Por conseguinte, assim como sob "ligar" se entende tornar [alguém] devedor sem reunião do tesouro e sem tirar-lhe algo realmente, da mesma forma sob "desligar" é preciso entender tornar [alguém] livre sem uma expensão efetiva do tesouro.


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Tese 62
O verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus.

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Em boa parte da Igreja o Evangelho de Deus é uma coisa bastante desconhecida. Por isto, temos que falar dele um pouco mais amplamente. Pois Cristo nada deixou no mundo exceto tão-somente seu Evangelho. Daí que nada entregou a seus servos chamados senão minas, talentos, dinheiro, denários, para, a partir destas palavras de tesouros, demonstrar que ele é o verdadeiro tesouro. Paulo diz que entesoura para seus filhos. Cristo [fala de] um tesouro escondido no campo. E o fato de ser abscôndito faz com que ao mesmo tempo ele também seja negligenciado.

O Evangelho, porém, segundo o apóstolo em Rm 1, é uma prédica a respeito do Filho encarnado de Deus, nos dado sem méritos [nossos] para salvação e paz. Ele é palavra de salvação, palavra de graça, palavra de consolo, palavra de alegria, a voz do noivo e da noiva, palavra boa, palavra de paz, como diz Is 40: "Quão jucundos são os pés dos que anunciam boas-novas, que anunciam a paz, que pregam coisas boas." A lei, contudo, é palavra de perdição, palavra de ira, palavra de tristeza, palavra de dor, voz do juiz e do réu, palavra de inquietação, palavra de maldição. Pois, segundo o apóstolo, a lei é a força do pecado, a lei opera a ira, é lei da morte. Com efeito, a partir da lei nada temos senão uma má consciência, um coração inquieto, um peito pávido em face de nossos pecados, que a lei mostra, mas não remove e que também nós não podemos remover. Assim, pois, a luz do Evangelho vem aos cativos, tristes e totalmente desesperados e diz: "Não temas!" [Is 35.4]. "Consolai-vos, consolai-vos, povo meu!" [Is 40.1]. "Consolai os pusilânimes!" [1 Ts 5.14]. "Eis o vosso Deus!" [Is 40.9]. "Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!" [Jo 1.29]. Eis aquele que é o único que cumpre a lei por vós, a quem Deus vos fez justiça, santificação, sabedoria, redenção, a todos quantos crêem nele. Quando ouve esta dulcíssima mensagem, a consciência pecadora revive, e exulta em saltos [de alegria], e [fica] cheia de confiança, e já não teme a morte, nem as espécies de penas associadas à morte, nem o inferno. Por isto, as pessoas que ainda temem as penas ainda não ouviram Cristo nem a voz do Evangelho, e sim, antes, a voz de Moisés.

Assim pois, deste Evangelho nasce a verdadeira glória de Deus, ao sermos ensinados que a lei está cumprida não por meio de nossas obras, mas da graça do Deus que se comisera em Cristo, e que ela é cumprida não obrando, mas crendo, não oferecendo qualquer coisa a Deus, mas tudo recebendo e participando de Cristo, de cuja plenitude todos nós participamos e recebemos. Disto trato mais amplamente em outro lugar.


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Tese 63
Este tesouro, entretanto, é o mais odiado, e com razão, porque faz com que os primeiros sejam os últimos.

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É que o Evangelho destrói as coisas que são, envergonha as fortes, envergonha a sabedoria e as reduz ao nada, à fraqueza, à tolice, porque ensina humildade e cruz. Assim diz Sl 9.5: "Repreendeste os gentios, e o ímpio perece; apagaste o nome deles." Mas têm horror dessa regra da cruz todos aqueles aos quais agradam as coisas terrenas e o que é seu e dizem: "Duro é este discurso." [Jo 6.60]. Por isso não admira que o discurso de Cristo seja sobremodo odioso aos que amam ser alguma coisa, ser sábios e poderosos diante de si mesmos e das pessoas, e se crêem os primeiros.


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Tese 64
Em contrapartida, o tesouro das indulgências é o mais benquisto, e com razão, pois faz dos últimos os primeiros.

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Porque ele ensina a ter horror das penas; mais ainda: torna livre da pena, o que cabe unicamente aos justos. Pois ninguém necessita de indulgências senão um servo das penas, isto é, que não as calca com os pés, reinando sobre elas com soberbo desprezo, mas é por elas premido e delas foge como uma criança das sombras da noite e das trevas. Não obstante, são deixadas livres, ao passo que mesmo os justos estão sujeitos a várias penas.


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Tese 65
Por esta razão, os tesouros do Evangelho são as redes com que outrora se pescavam homems possuidores de riquezas.-----------------------
Pois assim diz o apóstolo: "Não busco os vossos bens, mas a vós mesmos." [2 Co 12.14]. E Cristo: "Farei de vós pescadores de seres humanos." [Mt 4.19]. Com efeito, a doce palavra cativa a vontade; mais ainda: faz com que o ser humano entregue sua vontade a Cristo. Daí que S. Pedro, pintado como pescador em Roma, diz: "Governo a Igreja como nave, as regiões do mundo são o meu mar, a Escritura é minha rede, o peixe é o ser humano".


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Tese 66
Os tesouros das indulgências, por sua vez, são as redes com que hoje se pesca a riqueza dos homens.-----------------------

Creio que esta tese está clara a partir do que foi dito, porque pelas remissões das penas o ser humano não é tornado melhor nem mais puxado para Deus (o que acontece tão-somente pela palavra de Cristo), uma vez que são palavras de um ser humano que concede licença e relaxação mais do que pega e liga. Se pegam alguma coisa, certamente só pegam dinheiro; almas é que eles não pegam. Não que eu condene esse negócio de juntar dinheiro; sim, em minha opinião, a providência de Deus parece cuidar para que esse negócio fosse remunerado ao menos nesta vida, ainda que com quantias módicas, para que nada permaneça não-remunerado. É que esse negócio é o mais vil entre as dádivas e os ofícios da Igreja e não merece ser coroado na vida futura. No entanto, antigamente as relaxações aconteciam de graça.


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Tese 67
As indulgências apregoadas pelos seus vendedores como as maiores graças realmente podem ser entendidas como tal, na medida em que dão boa renda.-----------------------

Pois a audaz ignorância se atreve ao ponto de chamar de o maior aquilo que é o menor, e então se deixam por conta do povo o juízo e a faculdade de compreender corretamente, para que, errando, creia que a graça de Deus é dada aqui. Pois eles mesmos não explicam, para não serem obrigados a contradizer a si mesmos ou serem descobertos como mentirosos, porque chamaram o pequeno de grande.


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Tese 68
Na verdade elas são as graças mais ínfimas em comparação com a graça de Deus e a piedade da cruz.-----------------------
Sim, em comparação com a graça de Deus, elas são nada e são nulas, já que, antes, operam o contrário da graça de Deus. Não obstante, são toleradas por causa dos indolentes e preguiçosos, como é evidente a partir do que foi dito.


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Tese 69
Os bispos e curas têm a obrigação de admitir com toda a reverência os comissários de indulgências apostólicas.-----------------------

Porque em tudo se deve ceder à autoridade papal com reverência. Pois "quem resiste à autoridade, resiste à ordenação de Deus; mas os que resistem a Deus obtêm para si condenação." [Rm 13.2]. E o Senhor mesmo diz: "Quem vos despreza, a mim me despreza." [Lc 10.16]. Por conseguinte, deve-se ceder à autoridade em coisas pequenas não menos do que em grandes. Daqui vem também que, ainda que o papa pronuncie setenças injustas, elas devem ser temidas, e, como diz o imperador Carlos, "tudo o que ele tiver imposto, por mais pesado que seja, deve ser suportado." Também por experiência vemos isso acontecer por parte da Igreja, que hoje certamente é premida por infinitos fardos e, mesmo assim, [os] carrega quieta, com piedade e humildade. Contudo, isto deve ser compreendido, para que alguém não chegue a uma cosnciência errônea, como se as sentenças injustas devam ser temidas porque devam ser aprovadas como justas por aqueles que têm obrigação de temê-las, visto que o próprio pontífice decreta que são ligadas pela Igreja algumas pessoas que, não obstante, não estão ligadas perante Deus, e as obriga a suportar a ligação. No entanto, tal ligação não as prejudica, porque é apenas uma pena e deve ser temida, mas não deve causar inquietação de consciência. Do mesmo modo, devemos temer a Deus em toda outra violência, também profana, e não relutar soberbamente com desprezo. Desta maneira devem ser suportados também os fardos, não porque ocorram com justiça e devam ser aprovados, porém como flagelos infligidos por Deus, que devem ser carregados com humildade. Por esta razão, setenças injustas e fardos devem ser temidos não por causa daquele preceito geral: "Entra em acordo com teu adversário no caminho." [Mt 5.15]. E daquela palavra: "A quem te ferir na face direita, oferece-lhe também a esquerda.", etc. [Mt 5.39]. Em Rm 12.19: "Não defendais a vós mesmos", etc. Pois se isto fosse apenas um conselho (como muitos, inclusive teólogos, parecem crer erroneamente), então seria permitido resistir com a mesma liberdade ao papa em seus fardos e suas sentenças injustas como ao turco ou a outros adversários. Entretanto, não se deve resistir absolutamente a ninguém, embora não se deva aprovar a obra deles, para que não haja erro na consciência. Mas este assunto, muito necessário, exige outro tempo e outra obra.


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Tese 70
Têm, porém, a obrigação ainda maior de observar com os dois olhos e atentar com ambos os ouvidos para que esses comissários não preguem os seus próprios sonhos em lugar do que lhes foi incumbido pelo papa.-----------------------

É uma regra provadíssima dos juristas aquela de que, em todas as concessões, o papa age de tal forma que não prejudica a nenhum outro, a menos que o faça com menção expressa e da plenitude de seu poder, como ensinam também o costume e o estilo da Cúria. Por esta razão, é certíssimo que, ao dar indulgências, ele quer que elas nada mais sejam do que indulgências e que não valham outra coisa do que valem por natureza; permite, porém que elas valham tanto quanto valem, satisfeito com as haver dado, pois em nenhum lugar declara o valor delas. Esta é a incumbência do papa. Contudo, nossos pregoeiros vão mais longe e não apenas se jactam nos púlpitos de que são papas - outros os consideram, mais corretamente, papos -, mas ao nome também conjugam o ofício tanto do papa quanto da Igreja, e nos determinam como que do céu e proclamam com confiança o que são as indulgências, sim, muitíssimo além do que elas são e jamais podem ser, como pode ser provado mesmo a partir de seu último livro. Assim pois, os bispos têm obrigação de proibir os sonhos deles, para não deixar que lobos entrem no aprisco de ovelhas de Cristo, como é expressamente ordenado no livro V, de pe. et re. c. Cum ex eo, e nas Clementinas, no mesmo livro, capítulo Abusionibus, que permitam que seja apresentado ao povo unicamente o que está contido em suas cartas.


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Tese 71
Seja excomungado e maldito quem falar contra a verdade das indulgências apostólicas.-----------------------

Pois, embora a distribuição de indulgências seja coisa pequena em comparação com a graça de Deus e com o grande berreiro dos que as pregam, age soberbamente contra a autoridade quem contradiz. Por isto, ele é merecidamente maldito, já que a obediência eclesiástica é tanto mais admirável quanto, também em coisas menores, cede a opinião dele e se humilha. Ora, o que é a verdade das indulgências foi suficientemente debatido até agora e ainda aguarda a determinação da Igreja; só que é certo que elas são relaxações de penas temporais tão-somente, o que quer que afinal sejam. A relaxação de penas, porém, é (como disse) uma dádiva de menor valor que a Igreja pode dar, especialmente se a dá àqueles a quem remitiu a culpa. A remissão da culpa, contudo, é, juntamente com o santo Evangelho, a maior dádiva de todas. Com esta eles não se importam tanto, ou pelo menos a ignoram.


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Tese 72
Seja bendito, porém, quem ficar alerta contra a devassidão e licenciosidade das palavras de um pregador de indulgências.-----------------------
Pois tal é o estado da viúva de Cristo, da santa Igreja, hoje em dia, que tudo é permitido a todos, principalmente aos teólogos escolásticos, entre os quais se encontram os que condenam também opiniões verdadeiras, só porque não provieram da fonte deles; a eles, entretanto, é permitido afirmar que Deus faz o pecado, que Deus é a causa do mal, da culpa, e muitas outras coisas. Se algum poeta ou orador (como chamam), ou alguém instruído em grego, latim ou hebraico dissesse isso, seria o pior de todos os hereges. Mas este dano é maior. Se um cristão vende armas aos turcos, ou impede os que se dirigem a Roma, ou viola escritos apostólicos, isso é um crime tão grande, que jamais é dado nenhum poder de remití-lo ainda que seja dado o mais pleno dos poderes. [Tais casos] a Sé Apostólica reserva para si. Então a Igreja agia de maneira tão santa que, observados primeiramente os mandamentos de Deus, queria punir com tanto rigor mesmo coisas tão pequenas. Pois ainda não havia essa Lerna e esse Tártaro de simonias, devassidões, pompas, assassinatos e demais abominações na Igreja.

Ora, se essas coisas são punidas tão duramente, com que rigor cremos que devem ser punidos os que não oferecem aos turcos, mas aos demônios, [e oferecem] não quaisquer armas, mas nossas próprias armas, isto é, a palavra de Deus, contaminando-a com seus sonhos e (como Isaías costuma falar) transformando-a num ídolo por seu espírito, de modo que ela não é um instrumento pelo qual a alma é atraída, mas desviada para falsas opiniões? Porém esse vício é de tal modo permitido em toda parte, que é viciosíssimo que não o considera uma virtude e o maior dos méritos, por quem quer que seja praticado. Assim também o B. Jerônimo se queixa que a Escritura está aberta para todos não para aprender, mas para dilacerar.

[...]

Assim pois, são dignos de bênção os que se esforçam para purificar as Santas Escrituras e para elucidá-las [livrando-as] das trevas das opiniões e dos argumentos humanos, pelos quais nos tornamos pelagianos no pensamento e donatistas na ação. Mas disto tratarei em outra ocasião.


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Tese 73
Assim como o papa com razão fulmina aqueles que de qualquer forma procuram defraudar o comércio de indulgências,-----------------------

Digo mais uma vez, assim como já disse anteriormente (qualquer que seja a intenção pessoal do sumo pontífice), que se deve ceder humildemente ao poder das chaves e favorecê-lo, e que não se deve resistir a ele inconsideradamente. Pois ele é poder de Deus, que, quer seja bem usado, quer seja mal-usado, deve ser temido assim como qualquer outra obra vinda de Deus - ele porém, mais ainda.


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Tese 74
muito mais deseja fulminar aqueles que, a pretexto das indulgências, procuram defraudar a santa caridade e verdade.-----------------------

Pois por mais que o poder deva ser honrado, não é por isto que devemos ser ignavos ao ponto de não reprovar seu abuso ou não lhe resistir. Com efeito, assim todos os santos sustentaram e honraram o poder secular - que o apóstolo também chama de poder de Deus - mesmo em meio às penas e torturas que ele lhes causou; não obstante, abominavam com constância seu abuso. E não o sustentaram porque aqueles tivessem usado o poder corretamente ao persegui-los, mas lhes deixaram a consciência do mal feito e, através da morte, levaram consigo o testemunho e a confissão da inocência, como diz o B. Pedro: "Que ninguém sofra como ladrão", etc. [1 Pe 4.15]. Assim, se a Igreja ou o pontífice privarem alguém da comunhão dos crentes sem razão, ele deve suportar isso e não condenar o poder. Todavia, não deve temê-lo de tal forma que aprove isso como se tivesse sido bem feito; deve, antes, morrer na excomunhão. Pois está excomungado só por um erro da chave; se aprovar esse erro pedindo para ser absolvido, erra de modo pior ainda. Deve honrar e suportar a chave, mas não aprovar o erro.

Por conseguinte, devem ser fulminados os que pregam as indulgências de tal maneira, que querem que elas sejam vistas como graças de Deus; pois isto é contra a verdade e o amor, que, tão-somente, constituem tal graça. E seria muito melhor que não houvesse indulgências em algum lugar do que tais opiniões fossem semeadas entre o povo. É que podemos ser cristãos sem indulgências; com tais opiniões, porém, não podemos ser senão hereges. Ora, é certo que o sumo pontífice crê ou deve querer que no povo haja primeiramente caridade e misericórdia mútua e que os outros mandamentos de Deus nele floresçam, e assim concede indulgências. Agora, contudo, ele é enganado, porque amor, misericórdia e fé estão quase extintos entre nós, e não apenas esfriaram. Pois se ele soubesse disso, deixaria as indulgências de lado e faria com que o povo voltasse primeiramente à caridade mútua. Assim, eu invoco o Senhor Jesus como testemunha de que o povo em grande parte (alguns dizem: completamente) ignora que obras de caridade são melhores do que indulgências, crendo, pelo contrário, que nada de melhor pode fazer do que comprar indulgências. E nesta opinião herética e pestilenta o povo não tem nenhum censor ou mestre fiel; tem, antes, instantíssimos instigadores por meio dessas pomposas trombetas.


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Tese 75
A opinião de que as indulgências papais são tão eficazes ao ponto de poderem absolver um homem mesmo que tivesse violentado a mãe de Deus, caso isso fosse possível, é loucura.-----------------------
Sou obrigado a chamar de insanas as pessoas que têm tal opinião, e devemos pedir perdão à divina Virgem por sermos obrigados a dizer e pensar tais coisas, mas não havia caminho disponível para evitar essa necessidade. Não sei por obra de que diabo aconteceu que o povo espalhou esse rumor em toda parte, quer isso tenha sido realmente dito assim, quer tenha sido entendido assim pelo povo. Embora muitas pessoas, e pessoas conceituadas, asseverassem com firmeza que é assim que se prega em muitos lugares, eu antes me admirei do que acreditei, julgando que tinham ouvido erradamente. Por esta razão, nesta tese não quis argüir qualquer pregador, e sim advertir o povo, que começou a pensar coisas que talvez ninguém tenha dito, pois quer eles as tenham dito, quer não, não me importa, até que eu adquira mais certeza. Entretanto, de onde quer que tenha surgido, essa péssima opinião tinha que ser repelida e condenada. Contudo, não seria de admirar que o povo entendesse tais coisas, pois ouve que, por causa da magnitude das graças, pecados grandes e horrendos são considerados de algum modo levíssimos.

A pregação verdadeira e evangélica consiste em magnificar os pecados tanto quanto possível, para que o ser humano chegue ao temor e a uma penitência autêntica. Por fim, de que serve trovejar com tantos exageros, por causa da vilíssima remissão de penas, com a finalidade de exaltar as indulgências, e mal-e-mal dizer um pio por causa da laubérrima sabedoria da cruz? Sim, como isso não haveria de prejudicar o povo simples, que costuma julgar do valor da palavra conforme a gesticulação e a pompa com que é pregada? Ora, o Evangelho é apresentado sem nenhuma pompa, ao passo que as indulgências o são com toda a pompa, e isto para que o povo creia que o Evangelho não é nada e que as indulgências são tudo.

Visto que ousam clamar de homicídios, latrocínios, libidinagem de toda espécie, blasfêmias contra a virgem Maria e contra Deus são coisas de pouca monta, sendo remitidas através dessas indulgências, é de admirar por que não clamam que são remitidas também aquelas coisas de menor importância que são reservadas na bula da Ceia. "O pontífice não remite". Vê, pois, que por acaso ele não remita também aquelas coisas - ou, pelo menos, não as remita tão facilmente -, que são muito mais graves do que essas.


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Tese 76
Afirmamos, pelo contrário, que as indulgências papais não podem anular sequer o menor dos pecados veniais no que se refere à sua culpa.-----------------------

Eu não teria apresentado este abrandamento se não quisesse tornar abominável a opinião da tese precedente. Está claro, porém, que nenhuma culpa é perdoada senão unicamente por Deus. Por esta razão, também aqueles grandes pecados não são remitidos por meio de autorizações, mas são declarados perdoados, e sua pena é que é remitida. Digo isto segundo a opinião deles; a minha ficou suficientemente clara acima. Aqui, contudo, deveria ter me demorado mais no pecado venial, que hoje em dia é considerado de tão pouca importância, como se quase não fosse pecado, e, temo eu, para grande ruina de muitos, que roncam seguramente nos pecados, não vendo que cometem crimes. Eu confesso que enquanto li os mestres escolásticos nunca entendi o que e quão grande é o pecado venial. Não sei se eles mesmos o compreendem. Digo brevemente: quem não teme e age assiduamente como se estivesse repleto de pecados mortais dificilmente será salvo alguma vez, porque a Escritura diz: "Senhor, não entres em juízo com o teu servo". [Sl 143.2]. Pois não só os pecados veniais, como os chamam agora em toda parte, mas também as boas obras não podem resistir ao juízo de Deus, necessitando da misericórdia perdoadora. Pois ele não diz: "Não entres em juízo com o teu inimigo", mas sim "com o teu servo e filho, que te serve". Portanto, este temor deveria nos ensinar a suspirar pela misericórdia de Deus e a confiar nela. Onde ele falta, começamos a confiar mais em nossa consciência do que na misericórdia de Deus, não estando cônscios de haver praticado qualquer crime.

Estas pessoas vão cair num juízo horrendo.


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Tese 77
A afirmação de que nem mesmo S. Pedro, caso fosse o papa atualmente, poderia conceder maiores graças é blasfêmia contra São Pedro e o papa.

Tese 78
Afirmamos, ao contrário, que também este, assim como qualquer papa, tem graças maiores, quais sejam o Evangelho, os poderes, os dons de curar, etc., como está escrito em 1 Co 12.
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Porque estão sob o poder e na obediência do papa todos quantos têm esses dons na Igreja. Ele pode enviá-los para onde quiser, mesmo que ele próprio não os tivesse pessoalmente - para não dizer que a bula da Ceia, juntamente com seus casos, ainda não está suspensa. Maior ainda seria a graça do sumo pontífice se concedesse, de graça, todas essas faculdades a todos os cristãos que delas necessitassem; depois se, tendo abolido os onerosos cânones, restituísse a liberdade do povo cristão e condenasse a tirania dos [ocupantes de] cargos e simoníacos. Mas talves essas coisas não estejam em seu poder, pois o inimigo tornou-se forte e a princesa das províncias foi colocada sob tributo. A destra do Senhor fará essa proeza, se formos dignos de obtê-la. 


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Tese 79
É blasfêmia dizer que a cruz com as armas do papa, insignemente erguida, equivale à cruz de Cristo.
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Quem não vê quão descaradas são essas pessoas? O que não haverão de ousar os que ousam tais coisas? Devem as almas redimidas pelo sangue de Cristo ser confiadas a essa gente? A cruz de Cristo vivifica o mundo todo, tendo morto o pecado; aquela cruz armada concede remissão de certas penas - e assim a pena eterna e a temporal são iguais? Porém por que eu haveria de enumerar todas as monstruosidades que se seguem de tal discurso, monstruosidades essas cuja exibição nem o céu poderia suportar?

Tese 80
Terão que prestar contas os bispos, curas e teólogos que permitem que semelhantes conversas sejam difundidas entre o povo.
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Mas o poder da Igreja é temido; além disso, os erros e ofensas atualmente cometidos contra a Sé Romana são punidos com dupla espada. Todavia, será que por causa disto se deve silenciar? "Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma". [Mt 10.28]. "Quem me confessar perante os seres humanos, também eu o confessarei diante de meu Pai". [Mt 10.32]. Entretanto, admira-me muito quem inventou por primeiro essa glosa de que as duas espadas significam que uma é espiritual (não como o apóstolo a chama, a saber, a espada do Espírito, a palavra de Deus) e a outra, material, de modo a, assim, nos fazerem do pontífice, armado com ambos os poderes, não um pai amável, mas como que um tirano temível, em quem não vemos senão poder por todos os lados.

E esta é a fidelíssima glosa sobre os decretos dos pais, em que tão rigidamente se proíbem as armas aos clérigos. Vê aqui se o Deus irado, vendo que, em lugar da espada do Espírito e do Evangelho, preferimos compreender uma espada de ferro, não agiu justissimamente conosco dando-nos a espada que quisemos e tirando-nos a que não quisemos, de modo que em parte alguma do mundo os estragos das guerras foram mais cruéis do que entre os cristãos, e de modo que, inversamente, a Sagrada Escritura dificilmente foi mais negligenciada do que entre os cristãos. Eis que tens a espada que quiseste! Ó glosa digna do próprio inferno! No entanto, ainda somos de pedra, de modo que não percebemos a ira de Deus. Por que, pergunto eu, aquela amabilíssima inteligência não interpreta também as duas chaves com igual sutileza, a saber, que uma prodigaliza as riquezas do mundo, a outra, porém, as riquezas do céu? A respeito de uma delas a opinião é suficientemente manifesta, porque, segundo os pregadores de indulgências, ela abre incessantemente o céu e faz as riquezas de Cristo transbordarem. Mas ele não pode entender a outra assim, sabedor da voragem avidíssima de riquezas existente na Igreja. Pois não é conveniente à Igreja e ao patrimônio de Cristo dissipar as riquezas do céu. Por isso, a outra chave é a chave da ciência. Se acrescentasse: "A outra espada é a espada da ciência", se falaria apostolicamente. Em todas essas coisas o furor do Senhor ainda não está afastado, sua mão ainda está estendida, e isto porque é uma coisa extraordinariamente penosa estudar as Sagradas Escrituras. Delas munidos (segundo o apóstolo), destruiríamos fortificações e toda altitude que se levanta contra o conhecimento de Deus. Agrada-nos uma economia desse labor, de modo que não destruímos as heresias ou os erros, mas queimamos os hereges e os que erram. Nisto nos orientamos pelo conselho de Catão - [que consideramos] melhor que o de Cipião - acerca da destruição de Cartago. Sim, [fazemos isto] contra a vontade do Espírito, que escreve que jebuseus e cananeus foram deixados na terra da promissão para que os filhos de Israel aprendessem a fazer guerra e tivessem o hábito da terra. Se S. Jerônimo não me engana, creio que isso foi prefigurado a respeito das guerras contra os hereges. Ou então o apóstolo, por certo, merece crédito ao dizer: "Importa que haja heresias." [1 Co 11.19]. Nós, entretanto, dizemos: "De forma alguma. Importa queimar os hereges e, assim, arrancar a raiz junto com os frutos, sim, o joio junto com o trigo." O que diremos quanto a isto, exceto dizer com lágrimas ao Senhor: "Tu és justo, Senhor, e reto é o teu juízo" [Sl 119.137]? Pois que outra coisa merecemos? Ora, menciono essas coisas também para que os begardos, nossos vizinhos, hereges, povo infeliz, que se regozija com o fedor romano (assim como o fariseu em relação ao publicano), mas não se compadece - para que, digo, eles não creiam que nós desconhecemos nossos vícios e nódoas e não se ensoberbeçam desmesuradamente contra nossa miséria, se parece que os silenciamos e aprovamos. Nós conhecemos nossa desgraça e sofremos por causa dela, mas não fugimos como os hereges e não passamos ao largo do semimorto, como se temêssemos nos manchar com pecados alheios. Devido a esse insensato temor eles temem de tal maneira que não têm vergonha de se gloriar que fogem para não serem manchados. Tão grande é o amor [deles]! Nós, porém, quanto mais miseravelmente sofre a Igreja, tanto mais fielmente assistimos e acorremos chorando, orando, advertindo, suplicando. Pois assim ordena o amor, que levemos as cargas uns dos outros, não como faz o amor dos hereges, que só procura o proveito do outro para ser, antes, carregado e para não suportar nada de molesto dos pecados dos outros. Se Cristo e seus santos tivessem querido agir desse modo, quem teria sido salvo?


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Tese 81
Essa licenciosa pregação de indulgências faz com que não seja fácil, nem para homens doutos, defender a dignidade do papa contra calúnias ou perguntas, sem dúvida argutas, dos leigos.
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Embora meus amigos já há muito tempo me tachem de herege, ímpio, blasfemo, porque não compreenderia a Igreja de Cristo e as Santas Escrituras no sentido católico, eu, apoiado em minha consciência, creio que eles estão enganados e que amo a Igreja de Cristo e sua beleza: "Mas quem me julga é o Senhor, ainda que eu não esteja consciente de nada." [1 Co 4.4]. Sou obrigado a expor todas essas minhas teses porque vi que alguns eram infectados por falsas opiniões, que outros riam disso pelas tavernas e zombavam manifestamente do santo sacerdócio da Igreja, o que era ocasionado pela excessiva licença com que se pregavam as indulgências. Não se deveria provocar o povo dos leigos, através de um maior número de ocasiões, a odiar os sacerdotes, pois ele, já há muitos anos ofendido por nossa cobiça e nossos péssimos costumes, infelizmente só honra o sacerdócio por causa do medo do castigo.


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Tese 82
Por que o papa não evacua o purgatório por causa do santíssimo amor e da extrema necessidade das almas - o que seria a mais justa de todas as causas -, se redime um número infinito de almas por causa do funestíssimo dinheiro para a construção da basílica - que é uma causa tão insignifcante?
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Esta pergunta é suscitada não pelo papa, mas pelos questores, porque, como eu disse acima, em parte alguma se lê qualquer decreto do sumo pontífice sobre essa questão. Por isso, que a respondam os que a suscitaram. Eu responderia todas essas perguntas com uma palavra, tanto quanto pode ser feito em favor da honra dos pontífices, a saber, que ninguém os informa sobre a verdade da questão, e freqüentemente acontece que fazem más concessões aos que os informam mal.


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Tese 83
Por que se mantêm as exéquias e os aniversários dos falecidos e por que ele não restitui ou permite que se recebam de volta as doações efetuadas em favor deles, quando já não é justo orar pelos redimidos?
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Conheço muitos que se fatigaram comigo por causa desta pergunta, e, apesar de muitas saídas, laboramos em vão. Dissemos também que se as almas saíssem voando, então os ofícios em prol delas instituídos se transformariam em louvor de Deus, assim como acontece quando morrem crianças e infantes. Outro disse outra coisa, mas ninguém satisfez. Por fim, comecei a debater e a negar que os discursos deles sejam verdadeiros, para talvez assim finalmente arrancar dos mais doutos o que se deveria responder aqui.


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Tese 84
Que nova piedade de Deus e do papa é essa: por causa do dinheiro, permitem ao ímpio e inimigo redimir uma alma piedosa e amiga de Deus, porém não a redimem por causa da necessidade da mesma alma piedosa e dileta, por amor gratuito?

Tese 85
Por que os cânones penitenciais - de fato e por desuso já há muito revogados e mortos - ainda assim são remidos com dinheiro, pela concessão de indulgências, como se ainda estivessem em pleno vigor?

Tese 86
Por que o papa, cuja fortuna hoje é maior que a dos mais ricos Crassos, não constrói com seu próprio dinheiro ao menos esta uma Basílica de São Pedro, ao invés de fazê-lo com o dinheiro dos pobres fiéis?
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Quanto a esta e a perguntas semelhantes eu digo: não nos cabe julgar a vontade do papa, mas apenas suportá-la, ainda que por vezes fosse iniqüíssima, como disse acima. Não obstante, ele e os pregadores de indulgências devem ser advertidos, para que não se dê ao povo ocasião tão manifesta para falar, como fez outrora o sacerdote Eli, de modo que, por causa de seus filhos, as pessoas detraiam o sacrifício do Senhor. Todavia, se alguma vez foi intenção do papa construir a Igreja de São Pedro com tanto dinheiro arrebanhado, e não, antes, daqueles que abusam da complacência do papa em proveito próprio, não é necessário expor por escrito o que em toda parte se fabula sobre essa construção. O Senhor conceda que eu esteja mentindo; essa extorsão não poderá correr bem por muito tempo.


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Tese 87
O que é que o papa perdoa e concede àqueles que, pela contrição perfeita, têm direito a remissão e participação plenária?
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Essa pergunta provém do fato de que muitos, mesmo juristas, dizem que não sabem o que é a remissão da culpa por meio das chaves. A este respeito expus minha opinião acima.


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Tese 88
Que benefício maior se poderia proporcionar à Igreja do que se o papa, assim como agora o faz uma vez, da mesma forma concedesse essas remissões e participações 100 vezes ao dia a qualquer dos fiéis?
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Quanto a isto [ouvem-se] coisas realmente assombrosas. Alguns imaginam um tesouro comum que seria aumentado através das indulgências. Por isso, se uma pessoa obtiver remissão plenária sete vezes ao dia, como pode acontecer em Roma, tanto mais bens obterá. Estes contradizem a si mesmos, porque, segundo eles, as indulgências implicam gastar - portanto, não juntar - o tesouro. Outros pensam que os pecados são perdoados do mesmo modo como a divisão de um [objeto] contínuo [é feita] ao infinito. Assim como a madeira é dividida em [pedaços] sempre divisíveis, da mesma forma são remitidos os pecados, sendo sempre ulteriormente remissíveis, embora se tornem sempre menores. Confesso que não sei o que dizer.


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Tese 89
Já que, com as indulgências, o papa procura mais a salvação das almas do que o dinheiro, por que suspende as cartas e indulgências outrora já concedidas, se são igualmente eficazes?
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Isto é o que mais inquieta e desagrada, e, confesso, com grande espécie. Pois essa suspensão é a única causa por que as indulgências se tornam sem valor. Assim, eu não posso negar que tudo o que o pontífice faz deve ser suportado, porém me dói o fato de não poder demonstrar que o que ele faz é o melhor. Não obstante, se eu tivesse que falar a respeito da intenção do papa sem a intromissão dos mercenários, diria que se deve presumir o melhor a respeito dela, falando com breviedade e confiança. A Igreja necessita de uma reforma, o que não é tarefa de uma única pessoa, do pontífice, nem de muitos cardeais - como o provou, a ambas as coisas, o último concílio -, mas de todo o mundo, mais ainda: unicamente de Deus. Mas só aquele que criou os tempos conhece o tempo dessa reforma. Nesse meio-tempo, não podemos negar falhas tão manifestas. As chaves sofrem abuso e estão a serviço de cobiça e ambição. O turbilhão ganhou ímpeto, e nós não podemos pará-lo. Nossas iniqüidades nos respondem, e a palavra de cada um é um fardo para ele.


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Tese 90
Reprimir esses argumentos muito perspicazes dos leigos somente pela força, sem refutá-los apresentando razões, significa expor a Igreja e o papa à zombaria dos inimigos e desgraçar os cristãos.
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Pois enquanto são reprimidos mediante o terror, o que é ruim fica pior. Quão mais correto seria que fôssemos ensinados a compreender essa ira de Deus, a orar pela Igreja e a tolerar tais coisas na esperança de uma reforma futura do que provocarmos coisa pior ao querer obrigar que vícios tão manifestos sejam considerados virtudes. Pois, se não merecêssemos ser vexados, Deus não permitiria que só seres humanos fossem senhores na Igreja. Ele nos daria pastores segundo seu coração, os quais, ao invés de indulgências, nos dariam a medida de trigo a seu tempo. Agora, porém, mesmo que haja bons pastores, eles não podem chegar a seu ofício. Tão grande é a ira do furor do Senhor.


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Tese 91
Se, portanto, as indulgências fossem pregadas em conformidade com o espírito e a opinião do papa, todas essas objeções poderiam ser facilmente respondidas e nem mesmo teriam surgido.
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Como? A saber, se tivesse pregado que as indulgências devem ser consideradas assim como são, apenas como remissões de penas, não como meritórias e inferiores às boas obras, jamais alguém teria sido levado a pôr em dúvida qualquer coisa em relação a elas. Agora, por causa de sua excessiva magnificação, suscitam questões insolúveis, para seu próprio aviltamento. Pois a opinião do papa não pode ser outra senão que as indulgências são indulgências.


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Tese 92
Fora, pois, com todos esses profetas que dizem ao povo de Cristo: "Paz, paz!" sem que haja paz!

Tese 93
Que prosperem todos os profetas que dizem ao povo de Cristo: "Cruz! Cruz!" sem que haja cruz!

Tese 94
Devem-se exortar os cristãos a que se esforcem por seguir a Cristo, seu cabeça, através de penas, da morte e do inferno;

Tese 95
e, assim, a que confiem que entrarão no céu antes através de muitas tribulações do que pela segurança da paz
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A respeito de cruz e penas - um sermão raro hoje em dia - foi o dito o suficiente acima.


Ao leitor sincero e erudito:

Não creias que este escrito foi publicado para ti, leitor erudito e sincero (mas que necessidade há dessa advertência?), como se eu temesse que ele te parecesse ciceroniano. Para teu deleite, tens o que ler em outra parte. Precisei tratar com meus semelhantes de nossas questões, isto é, de questões rudes e bárbaras. Assim aprouve aos céus. Eu não teria me atrevido a apelar para o nome do papa para essas minhas ninharias se não tivesse visto meus amigos confiarem o mais possível no terror em relação a ele, e também porque o peculiar ofício do papa consiste em tornar-se devedor a sábios e ignorantes, a gregos e bárbaros. Passa bem!


Fonte: Martinho Lutero, Obras Selecionadas - Os Primórdios Escritos de 1517 a 1519. Volume I. Comissão Interluterana de Literatura São Leopoldo. Co-Editoras: Editora Sinodal (São Leopoldo), Concórdia Editora (Porto Alegre), Editora da Ulbra (Canoas). 2004

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